VOCÊS DOIS NÃO SE BICAM!*
VOCÊS DOIS NÃO SE BICAM!
🖋Crônica por Paulo Rebelo
A história tão inusitada quanto hilária, que contarei a seguir, ocorreu comigo há mais de duas décadas.
Atendi uma senhora humilde, interiorana na casa dos 40 anos, às 9 da noite. Mal ela sabia assinar seu nome. Era uma doce pessoa. Estava desacompanhada. Dizia estar com falta de ar há um mes, que ocorria, sobretudo, pela madrugada. Sua pressão arterial estava muito alta e era do tipo de não dar sintomas.
Ali mesmo no consultório, eu a mediquei imediatamente. Apresentava claros sinais insuficiência cardíaca, quando o coração está fraco. Deixei-a em observação; 1 hora depois parecia que não tinha nada. Estava aliviada. Pedi-lhe muitos exames complementares para ratificar o diagnóstico e afastar outras causas. Levou receita para casa e orientações gerais sobre alimentação, repouso e atividade física.
Ao retornar 7 dias depois estava sorridente e sem sintomas. A pressão estava 125 x 85 mmHg e frequência cardíaca de 80 bpm*. Maravilha, pensei. Mais uma vez já era noite e naquela hora, eu já estava no meu limite fisicamente e com a cognição mais lenta. Trouxe todos os exames seus e outros ginecológicos, que não pedi. Estranhei, pois não percebi que estes eram de outra pesssoa. Imaginei que tivesse ido ao ginecologista.
Veio acompanhada de uma senhora, que identificou-se como professora e sua tutora. Pensei: “isso é ótimo, pois agora poderei dividir a responsabilidade com outra pessoa, quanto ao cuidado da paciente, deixando-a bem informada da situação. Ela se encarregará de transmitir a informação para seus familiares”.
A mulher era bem articulada e “despachada” mas inconveniente, atropelando a fala da paciente, pois leiga no caso clínico, com poucos minutos na sala, mostrou-se arrogante e pedante sobre algo que ignorava completamente, fazendo-me cobranças como: – “por que o senhor não encaminhou logo ao pneumologista?” “Naquele momento não vi necessidade”, disse-lhe. O pior foi: “se era tão grave como o senhor diz, por que ela não foi internada imediatamente?” Franzi a testa…deu-me um nó seco na garganta. O objeto da consulta era a paciente recuperada que, infelizmente, passou a ser secundária. Normalmente, esperava que a acompanhante dissesse: “obrigado doutor, e apartir de agora o vamos ou podemos fazer o quê?” Mas, nada disso. Ainda que buscasse ser atencioso e responder todos os seus questionamentos, não adiantava; eu já havia perdido o controle da situação. Autoritária e mandando do jogo disse-me imperiosamente em tom de superioridade moral e intelectual: “o senhor se acalme; estou só lhe fazendo apenas perguntas simples!”. O que te direi a seguir não me vanglorio, pelo contrário, e muito tempo depois, fazendo uma retrospectiva, teria feito diferente para evitar os dissabores que estavam por vir e que relatarei adiante.
Ao dizer que o atendimento da paciente teria “deixado a desejar”, interrompi bruscamente o seu discurso, batendo firmemente na mesa, assustando até a pobre paciente. “Chega! Que audácia a sua…a paciente está bem, é que importa; está tendo uma boa evolução diante do caso e ponto final. Levante-se e saia, por favor. A consulta está encerrada!” Não saiu. Sentada, chamou-me de grosso e mal educado. Aborrecido e sem paciencia, tomei a petulante mulher pelo braço esquerdo e a fiz sair do consultório “na marra”. Esbravejou protestando, dizendo que “iria procurar seus direitos”. Não temi sua ameaça tomando-a como bravata. Não dormi bem à noite. O que havia feito de errado?
⭐⭐⭐
Passados três meses, lá estava eu no TJAP diante da justiça pela primeira e única vez na vida como réu sendo acusado de “erro médico”. Naquele ambiente totalmente estranho para mim, me sentia envergonhado, humilhado e já condenado antecipadamente. Na corte estavam uma jovem juíza substituta, a professora como acusadora e a pobre paciente como “testemunha”, pode? Além dos advogados de defesa e acusação, nos fundos da sala havia uma pequena plateia de acadêmicos de direito com observadores.
A juíza era baixinha na casa dos 30 e poucos e tinha um forte sotaque nordestino. Após apresentações formais, iniciou a audiência dizendo que aquele tipo de ação era de pouca importância e que coisas assim é que sobrecarregavam o sistema judiciário brasileiro. Pensei: “isso me é favorável”. Escutou a queixa em tom de lamentação daquela professora, fazendo-lhe breves perguntas. Parece não ter lhe dado importância. Curiosa, voltou sua atenção para a testemunha de acusação: minha ex-paciente, que na sua inocente sinceridade disse que estava muito bem com o tratamento, que fora tratada bem e que não havia buscado outro médico. A juíza disse: “tá vendo”, como se falasse para uma platéia, “o que eu quis dizer. Essa ação judicial não faz nenhum sentido!”. Aliviado, vibrei por dentro. “Ganhei!” A acusadora, contrariada, começou a resmungar alto e choramingando. Foi advertida pela juíza. Em seguida, a mulher trêmula e nervosa, passou a chorar baixinho com lágrimas nos olhos e que escorriam copiosamente no rosto, que fez com que a juíza buscasse acalmá-la. “Meirinho, por favor, dê um lencinho p’rá ela. A senhora quer uma aguinha?” Serenados os ânimos, como uma patética condescendência, a juíza disse-lhe: “calma, minha senhora, se acalme, tá bem? É assim mesmo. A senhora fez certo em procurar a justiça, e se eu estivesse no seu lugar faria a mesmíssima coisa”. E para parecer simpática, baixando-se ao nível do povo, a juíza, com aquele burlesco sotaque arrastado, que distorcia e comia o final das palavras, fechou o discurso com um “gran finale”: “ói, eu chá intendi tudim, tudim; u sinhô, a sinhora, cês dois num si bicam, n’é verdadi?! (Traduzindo: olha, eu já compreendi a situação; o senhor, a senhora não se dão bem desde o início, certo?!). Protestei na hora!
A seguir, o “diálogo” que tive com a juíza:
EU- O que a senhora está dizendo?! Por quem a senhora me toma?
Juiza- O senhor está nervoso!
Eu- Nervoso, não! Eu estou é IN-DIG-NA-DO!
Juíza- Cale a boca!
(A essa altura, o meu advogado me cutucava e cochichava no meu ouvido: “não discuta com ela”.).
Eu- Que história é essa de gritar mandando eu calar a boca? A senhora, leiga, confunde os conceitos…
(A juíza me interrompe)
Juíza- Cale a boca! Senhor advogado, instrua seu cliente!
Eu- (ainda pude dizer mais ou menos aos trancos e barrancos) a senhora confunde conceitos; não sabe o que estar ansioso, tenso, raivoso, desequilibrado. Estou indignado. Não tenho nada contra essa mulher, apontando para a acusadora, que não me encarava mais.
Juíza: senhor advogado?!
Advogado (cochichando): calma, Paulo, vencemos, não estrague tudo.
Apesar da vitória, eu estava “acabado”; aquela juíza tinha me deixado com ódio. Perdi meu tempo e dinheiro, pois minha agenda médica fora cancelada no dia da audiência. Nunca tinha visto tanta arrogância e pedantismo.
A caminho de fazer um curso médico de uma semana em SP, buscava dormir no longo voo. Apenas no terceiro dia eu estava melhor. Depois de pensar no que iria fazer, relaxei.
Após 30 dias do ocorrido, já mais calmo e equilibrado, encaminhei uma carta em desfavor da juíza neófita para o presidente do TJAP, para o seu superior imediato e ao corregedor. Nela, descrevi brevemente o ocorrido e solicitava que TJAP aprimorasse seus métodos e qualificação de seus magistrados. Busquei não adjetiva-la e, objetivamente, não procurava justiça através de sua punição; a justiça já me havia sido favorável.
Após três longos meses, a resposta do corregedor: agradecia o contato, apreciava a minha carta em prol do aprimoramento da justiça, que a magistrada não negava o ocorrido, mas que minhas palavras estavam “fora de contexto”.
Agindo firmemente contra esse verdadeiro abuso de autoridade, me senti aliviado. A magistrada deve ter perdido todo um fim de semana respondendo à corregedoria e se justificando para terceirios durante um bom tempo.
Uma década depois, acredite se quiser, por obra de DEUS, a mesma paciente volta ao meu consultório. Veio para dar continuidade no tratamento, porque, segundo ela, eu era “o único médico que havia acertado a sua doença”. Pedia desculpas pelo ocorrido (algum tempo depois daquela audiência, a amizade entre as duas “fedeu”). Inicialmente, mal a reconheci. “Deixe p’rá lá; já passou”, eu disse. “O importante é que a senhora está bem e se tratando…”
🩺❤🩺
Paulo Rebelo, o médico escritor.