TRÊS BOLACHAS-MARIAS*
Crônica por Paulo Rebelo
“A escrita é minha auto terapia, onde meu providencial, mas impiedoso terapeuta é o Analista de Bagé”.(Paulo Rebelo).
A época de fim de ano me deixa sensível e emotivo, passando eu a ficar mais reflexivo e afeito a falar em solilóquios sobre meus sentimentos e a vida em geral. Segundo especialistas, isso não é prenúncio de loucura; esse é um hábito saudável, que ajuda até a organizar os pensamentos, começando na infância indo até a velhice.
Ainda que não tenha melindres em externar verbalmente meu pensamento e sentimentos que parecem vagos e confusos, às vezes, prefiro escrever mil vezes para evitar dizer asneiras e bobagens. É que ao escrever, reflete-se livre, mas cautelosamente sobre a fala, podendo esta ser corrigida, prevenindo os malentendidos.
Uma das coisas que me travava emocionalalmente era o NATAL. Apenas há alguns anos pude falar abertamente sobre a época do NATAL e seu significado, e que não me era nada belo. De certa forma, eu lhe era indiferente, beirando a um estranho distanciamento. Isso me trazia um desconforto e me perguntava o por quê e por que eu não conseguia ver beleza no NATAL, ainda que soubesse de seu significado, e isso me inquietava; pensava eu- “preciso mudar!”. Mas, como? É que, geralmente, com o envelhecimento, o ser humano vai ficando embotado sentimentalmente, sedimentando conceitos e preceitos rígidos, quando não preconceitos, que vão moldando sua personalidade, refletindo no seu caráter e humor (temperamento). Todavia, no meu caso, felizmente, antes que eu morresse, houve um longo processo de amadurecimeto, ainda que num penoso parto distócico, por exemplo, quando a criança está de nádegas no ventre da mãe. Nesse sentido, a escrita foi minha auto terapia, a porta de saída para a liberdade de falar sem medo da autocensura e crítica; uma verdadeira catarse e, pasme, a auto conscientização do meu trauma e o despertar da minha cura. Quem não tem um trauma na vida, que atire a primeira pedra.
A escrita foi e tem sido a minha terapia há muitos anos. Segundo a definição do dicionário, os sentimentos são: “a percepção subjetiva das emoções, a tomada de consciência, o resultado de uma experiência emocional, quando são moldados por experiências passadas, crenças, memórias, personalidades e pensamentos ligados a uma emoção específica”. Foi a minha situação: forte experiência traumática passada, quando criança e adolescente, que hoje a vejo com serenidade e resignação.
Até os meus 30 e poucos anos eu tinha um sentimento uma dicotomico em relação ao NATAL. Ao mesmo tempo que ele me convidava celebrá-lo, eu o rejeitava e mais adiante, tentarei explicar a razão. Hoje, consigo falar sobre ele clara e serenamente sem trazer a memória tristeza, rancor, ressentimentos e melancolia. Todavia, em decorrência disso, lembro minha vida marcada por laivos de depressão e ataques de pânico na infância e adolescência. Inconscientemente sabia o porquê. Eu era traumatizado e não imaginava sê-lo.
Tudo mudou com o casamento, filhos e, fundamentalmente, minha mulher Bernadete.
Antes disso, o NATAL para mim era apenas sinônimo de Papai Noel e presentes. O MENINO JESUS na mangedoura uma peça teatral. Era uma convenção, erroneamente, sinônimo de comércio para mim.Com o tempo, já casado, comprendi que Papai Noel não é apenas uma personagem alegórica no NATAL, mas um importante coadjuvante nesse instante inesquecível para as crianças. Ao trazer presentes para nossos filhos, obra de DEUS, metaforicamente, Papai Noel, grosso modo, representaria os TRÊS REIS MAGOS levando incenso, ouro e mirra para a criança abençoada e divina, que é o MENINO JESUS, razão do NATAL, porque ELE é DEUS, REI e HOMEM, respectivamente.
⭐⭐⭐
A partir de agora vou descrever, buscando não me delongar na minha saga libertadora, o grande ponto de inflexão de minha vida. A causa do desgosto pelo NATAL era o meu pai, que Deus o tenha. O que me motivou a escrever sobre isso, curiosamente, foi uma mera coincidencia; recentemente, ocorreu durante a consulta de um sofrido paciente, cuja a causa de sua depressão refratária e ansiedade crônica eram traumas na infância por abandono e violência doméstica. Seu pai era navegante. Há 20 anos tomava antidepressivos e ansiolíticos e hipnóticos para dormir à noite. É como um antialérgico e continuar se alimentando daquilo que lhe faz mal. O que cura uma grande ferida ocorre quando DEUS nos manda muito amor, compreensão e acolhimento, que pode ser através da sua própria família, um grande amigo, a profissão desempenhada como vocação.
Alguns psiquiatras hão de dizer que traumas da tenra idade são inesquecíveis, mas são tratáveis para o resto da vida; é que nem alcoolismo. Ainda depois de décadas, jazem inconscientemente no homem, distorcendo sua personalidade em formação, criando estranhos comportamentos patológicos, podendo se manifestar doentilmente aqui acolá na forma de somatização, quando problemas psíquicos provocam doenças físicas e organicas. Particularmente, creio, nunca a tive, exceto “insonia perturbadora, mas produtiva”, quando às 4 da manhã acordo e leio um livro ou se inspirado, escrevo meus textos como este que ora posto, iniciado na madrugada do NATAL 2023. Mas sei muito bem a dramaticidade disso, através do sofrimento de minha clientela, sintomas de difícil controle, quando o indivíduo sente tudo e não tem nada de grave organicamente. As consequências em mim foram menores, porém dignas de nota.
A minha família era da classe média baixa. Nunca passamos necessidade, mas a vida era bem simples. Meu pai Evandro, era um mocorongo* nascido em Santarém-PA, em 1927. Era marítimo e desde de que me entendo, eu o conheci viajando em gaiolas* pelo rios da Amazônia, de Belém à Manaus. Ele passava semanas e até mês fora de casa. Quando voltava era quase que um estranho para mim. Todavia, eu o conhecia mais por viajarmos meu irmão e eu, com ele durante as férias escolares. Autoritário e seco com esposa e filhos, falava dando ordens, então, foi chamado pela minha mãe, ironicamente, pelas costas, de “caga ordem”, porém era um homem generoso, trabalhador e responsável. Quando ele estava para voltar para casa, ela brincava: “lá vem o “caga ordem!”. Era uma gargalha só. Devo ter herdado isso dele. Segundo minha mulher Bernadete, eu herdei quase tudo dele, até o “caga ordem”, que juro por tudo que é mais sagrado, estou me curando!
Meu pai era cheio de manias e extrovertido até demais. Floreava suas muitas histórias. Era pavio curto. Quando por motivo banal, contrariado, tornava-se temperamental e violento verbal e fisicamente. Hoje, provavelmente, poderia ser enquadrado na “Lei Maria da Penha”.
Elei tinha a maior de suas qualidades, reconhecida por todos: altruismo; era prestativo do bem. Aos muitos igualmente necessitados ao seu redor, não emprestava dinheiro; o dava sem fazer nenhuma cobrança. Seu programa de milhagem da antiga VARIG era distribuido entre amigos, conhecidos e até desconhecidos. Era tido como um homem leal, honesto, bondoso, “da hora”, “pau para toda obra”; não tinha tempo ruim. Era bom de cerveja e whiskey, daí o apelido de CUIÚ-CUIÚ*. Quando voltava das longas viagens, para compensar o desgaste, queria beber “todas”. Após poucas rodadas de garrafas de cerveja e doses de whiskey com seus amigos, num piscar de olhos, de alegre e participativo, ficava “coçado”.
Assim, imagine a véspera de NATAL; já sabíamos o que viria. Ao invés de motivo de festa, era apreensiva para nós, pois desde o almoço, após alguns tragos de whiskey, de alegre, tornava-se falante e daí melancólico e inconveniente, relembrando a sua vida dura de arrimo de família e pobreza, porquanto, em torno das 22 horas, diante da lauta ceia com peru e arroz de galinha adornado com pedaços de maçã, banana frita, passas, azeitonas e queijo ralado,passava a discursar sobre o seu único presente de NATAL, que ganhara de seus pais, motivo de nossa tristeza e meu trauma natalino, hoje, superado, pela graça de Deus, visto que até há algum tempo, eu, já médico, parecia que me faltava um pedaço espiritualmente.
Ao acordar em meio ao silêncio do casebre na manhã do NATAL, entrecortado pela algazarra das crianças, que na rua brincavam alegremente com seus presentes, com a voz embargada pela emoção e bebida alcoólica, lagrimando, dizia com alguma riqueza de detalhes: notou que debaixo de sua rede, o seu único presente embrulhado num velho papel eram três bolachas-marias.
As minhas tias juram de pés juntos debaixo da cruz, que meu pai exagerava…
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Paulo Rebelo, o médico poeta.
*MOCORONGO – caboclo nascido em Santarém.
*GAIOLA é um grande embarcação de passageiros, de madeira.
*CUIÚ-CUIÚ é um peixe bicudo de água doce. O apelido de meu pai vem do fato dele fazer bico, quando tragava um forte whiskey puro.