TEMPO DE COLHEITA*

EDUCAÇÃO FAMILIAR
(Tempo de Colheita)
Texto de Paulo Rebelo

Algumas pessoas ao conhecer minha família, curiosas e ao mesmo tempo surpresas ou admiradas, me perguntam como educamos tão bem nossos cinco filhos, encaminhando-os, três rapazes e duas moças para a medicina. Bem, a resposta não é tão simples; é um tanto longa e para respondê-la a gente precisaria se sentar numa Delicatessen e tomar um café, enquanto conversássemos sobre isso, algo que me alivia e muito me apraz. Para começar, a realização do conjunto da obra é do casal, porém 80% do feito, saibam todos sem demagogia, é de minha esposa Bernadete. Eu fui seu assistente.

Apraz-me, porque a coisa mais calorosa que tenho é ver nossos filhos encaminhados na vida e independentes, ainda mais trabalhando todos na mesma profissão e juntos. Alívio pelo resultado, a despeito de eu não ter contribuído para isso como hão de imaginar e é sobre isso que eu gostaria de falar. A nossa conversa acabará se tornando a aceitação de um MEA CULPA e uma confidência. Porquanto, não te espantes sobre o que irei te dizer, então: não fui um bom pai durante muito tempo no sentido de estar presente fisicamente em suas vidas e se há algo a lamentar, por certo, seria isso. Explico: sendo egresso de uma família “remediada”, casamos cedo e logo senti a necessidade de trabalhar duro para sustentar os dois primeiros filhos. Bernadete, acadêmica de medicina e eu nos conhecemos nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia do Pará. Mesmo antes de nos graduarmos, já trabalhávamos como acadêmicos na área. Despertava-me muito cedo para trabalhar. Nunca soube o que é levar filhos na escola. Nunca almoçávamos juntos, exceto aos domingos e feriados ou nas curtas férias minhas.

Quando eu saia para trabalhar, eles estavam dormindo e ao voltar para casa às 10 da noite, eles já estavam dormindo, e nos fins de semana e feriados, quando estavam acordados brincando ou querendo brincar comigo, EU era quem dormia; um desencontro total.

Ignorante, acreditava que meu papel era de apenas de provedor. Na minha cabeça, eu era um trabalhador “braçal” 24 horas por dia e pai quando sobrasse tempo. E, quando dava e eu buscava ser o melhor como pai, mas isso ocorria apenas nesses raros fins de semana. Íamos todos para o interior se hospedar em alguma pousada simples às margens de um rio ou lago. Lá andávamos de canoa e aprenderam a nadar comigo. Poucos dias antes de pegarmos a estrada, as crianças entravam no “clima de férias”. Eu me responsabilizava pelo bem-estar de todos, cuidando do carro aos mantimentos para o fim de semana prolongado.

Absorto na necessidade do trabalho, sem perceber, com o passar dos anos, eu passei a fazer dele o meu lazer. Amava o que fazia, pois além do aspecto econômico rentável, havia a sensação de realização pessoal como ser humano. Era engano. A minha esposa, Bernadete, justiça seja feita, “segurou a onda” muitas vezes, por exemplo, quando eu ocupado ou assoberbado de preocupações, me esquecia da data de seus aniversários, dos presentes, chegava atrasado para os parabéns ou não podia comparecer às celebrações importantes nas escolas. “Mamãe, cadê o papai? Por que ele não vem?” “Meu filho, o teu pai está trabalhando. Ele não nos esqueceu, não, viu!”, dizia com afeto. Então, creio que nossos filhos sempre associaram o trabalho médico como algo digno.

Assim, naquela rotina os anos foram passando e um belo dia, minha esposa me chamou a parte e disse: “nossos filhos querem ser médicos”. Pensei: “nossa, que legal”. Fui tomado de surpresa, mas também por muita emoção e lágrimas contidas rolaram de meus olhos. Há algum tempo eu já me questionava sobre se minha vida se resumiria apenas ao trabalho, pois tinha enorme dificuldade em conciliar trabalho e um tempo para mim mesmo e família. Sofria calado.

Ao viajarmos em férias, pedi aos três que gostaria de conversar sobre a decisão que eles haviam tomado. Eu gostaria de me certificar se era isso mesmo, pois ser médico, além de ser um projeto pessoal, também é um projeto da família. A bem da verdade quem não gostaria de ter um filho-a médico assistindo toda família, familiares e amigos próximos para orgulho dos pais, avós, tios-as? Eu estava a caminho de sentir isso e para isso precisava me preparar, visto que a formação de um médico demanda muito tempo e esforço de toda a família, agora imagine formar três médicos. Nunca duvidei disso. Pensei: “vou ter que continuar trabalhando e agora muito mais”; o “sacrifício” seria recompensado quando os visse médicos.

Assim, depois de um belo jantar, sentamo-nos os quatro, já que minha esposa foi para quarto com nossas duas filhas ainda pequenas. “Antes de saber da decisão de vocês”, meio sem jeito e autoritário, perguntei: “qual é a opinião que vocês têm de mim como pai?” Fez-se um silêncio de surpresa, entreolharam-se e após permitirem-se a vez, falou o mais velho, mais ou mesmo assim (a voz era grave e com falsetes de um jovem): “O senhor não foi um bom pai”. Apesar de chocado, não fiquei surpreso. “Como assim?”, perguntei. “O senhor era ou é muito autoritário; cobra muito e dá muitas ordens”, disse. Tentei contra-argumentar, dizendo que eles eram “muito danados”. Desisti. Era melhor deixar que falassem. Todavia, isso merece uma explicação ao amigo-a: quando a minha esposa não conseguia “dominar” os três homenzinhos, que valentes brigavam entre si por liderança e espaço, ela gritava: “VOU CHAMAR O TEU PAI!”. Resultado: sem saber a autoridade dela ia para o brejo e a minha seria contestada no futuro como se vê agora, pois eu nunca estava presente. Para acabar como essa “briga de poder”, matriculei os meninos numa das primeiras oficinas de computação/informática (para montar/conserto de hardware e instalar software), o que foi um santo remédio, pois passaram a trabalhar juntos em casa. “O que mais?”, indaguei. O segundo disse: “o senhor não conversa com a gente como a mamãe faz”. Engoli seco. Emudeci. Era a mais pura verdade. A minha esposa se deitava com eles, brincava, os ensinava nos deveres da escola, passeava… Fez-se um longo silêncio e eu, envergonhado e me sentindo culpado, mal podia encará-los. Aí o terceiro falou: “mas olha, o senhor tem o lado positivo. Na escola, quando sabem que o senhor é nosso pai, diretor, professores, todos são seus pacientes e falam bem do senhor e nos tratam bem. Muitos têm filhos que se tratam com a mamãe (pediatra), acaba sendo a família toda. Então, a gente acha que ser médico é bom”.
“A melhor lembrança que temos do senhor”, disseram com saudosismo, “é dos nossos passeios nos interiores. Lá o senhor era “outra pessoa”, alegre presente, mais paciente”. Depois de tanto puxão de orelha, respirei aliviado. No fundo, sempre quis ser assim e por imaturidade, “falhei”.

O vestibular para cada um deles foi acontecendo e as conquistas foram se sucedendo. Depois de graduados as residências médicas, cuja formação pode ser quase uma outra graduação médica.

A cada três meses fazíamos um périplo pelo Brasil, visitando os filhos em três capitais diferentes, pois não existia medicina no nosso estado para sentir suas necessidades e “fazer correções no rumo”.

Aos amigos e conhecidos, digo-lhes e essa seria a mensagem de que a família deveria ser tratada como uma “empresa” séria, no caso desta, o lucro é a realização pessoal, o bem-estar e a felicidade de toda a família. Não se monta uma empresa para não dar certo nem como se fosse um carrinho de cachorro-quente na esquina. Infelizmente, por uma série de razões, muitas famílias acabam assim.

Uma vez ingressados na atividade médica fomos atrás de uma “faculdade paralela” e informal para educá-los naquilo que deveria ser ensinado como primordial nas faculdades de medicina: tratar do ser humano e não apenas do doente. Era necessário que abrissem as suas consciências para o homem que sofre de corpo e alma. Então, com a concordância de todos, fizeram oficinas nas áreas de fonoaudiologia, coaching, fundamentos para a administração de carreira pessoal, sobretudo PNL, cuja serventia foi despertar neles a consciência crítica e o amor à profissão. Surtiram um grande efeito em sua formação humana.

Amigos, familiares e conhecidos, todos dizem que nossos filhos são “diferentes”. E são, acredito que sim. Dura e silenciosamente Bernadete e eu trabalhamos para isso e eles seguiram nossos passos. Os três filhos já médicos influenciaram diretamente na escolha da profissão médica das nossas duas filhas que hoje, no café da manhã, discutem os casos clínicos com os irmãos médicos. À distância, eu os observo embevecido.

Atualmente, me sinto como se fosse um agricultor realizado com seu trabalho no campo, sentado no alpendre de sua propriedade, tomando um bom café diante do belo crepúsculo da tarde, observando a sua plantação verdejante em tempos de colheita.

Paulo Rebelo, o médico poeta.

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