TALVEZ*
(quem sabe)
Se vivesse noutro tempo,
quem sabe
eu teria menos tribulações,
menos preocupações.
Não viveria atrelado à sofreguidão da alma
nem à inquietude das paixões,
sujeito à escravidão do amor
Não teria patrão.
Viveria no solipsismo
e sem dor.
A minha preocupação seria apenas viver plenamente,
não buscar
ter o poder,
nem viver de aparências,
pois acumular riquezas,
esse pensamento sequer em mim existiria.
No meu mundo,
não haveria a noção de tempo nem hierarquia.
Não existiria a bomba atômica,
realeza nem nobreza.
Não haveria a avareza,
a ganância,
o egoísmo nem o orgulho
nem a vaidade,
nem tristeza,
apenas a sede,
a fome diária
e a verdade,
a beleza
Não haveria poluição.
Não haveria tiroteio.
Nunca mais receios
nem rebuceteios.
Só canto de pássaros e maresias,
marulho e banzeiros.
Caçar e
pescar,
sair pelos campos
para colher frutos,
folhas e raízes seriam não só as minhas necessidades básicas,
mas as necessidades plenas.
Viveria feliz e realizado.
Na minha vida não haveria mais espaço para pobreza.
Não haveria a correria de hoje
nem ansiedade
nem incertezas
nem a síndrome do pânico.
Para viver,
apenas o meu ânimo.
Teria elucubrações pueris,
numa eterna abstração,
elisões da alma,
banhando-me nos rios e cachoeiras,
alimentando-me das amendoeiras e de macaxeira,
dormindo agasalhado do frio coberto por pele animal,
sob estrelas,
ao som do farfalhar dos ventos na copa das árvores,
da paz celestial.
E quando caísse a chuva,
nela cantando, alegremente dançaria.
Não preocuparia com o dinheiro.
Para que?
Nem existiria o porta cédulas nem bolso,
pois estaria como Adão.
Viveria de folga,
sem carteira assinada,
deitado na rede,
debaixo da sombra das árvores à beira do rio.
Se me desse vontade,
colocaria o pé na estrada
e quando batesse o sono após o amor,
dormiria abraçado com minha amada por toda a madrugada.
Não haveria o despertador,
acordaria tarde.
Não teria mais que mais levar crianças para escola,
carregar alimentos do supermercado nas sacolas,
passar no banco,
escutaria músicas que amo
na velha vitrola.
E se tivesse algum motivo ou nenhum, não importa,
prontamente,
sairia pela porta da sala para caminhar nas matas,
na praia deserta,
sem receio de assaltos
nem do aquecimento global, apenas meus sonhos na mala.
Paulo Rebelo, o médico poeta.