SOMOS MUITO DIFERENTES*
SOMOS MUITO DIFERENTES
Por Paulo Rebelo
A nossa família é enriquecida por duas filhas “de coração”. É quase impossível transcrever o nosso sentimento de completude familiar, pois elas são parte indissociáveis de nossas vidas e agradeço a Deus por suas existências. Às vezes, cheguei a pensar que gostasse mais delas de que nossos próprios filhos biológicos, sem dúvida, pela dificuldades que enfrentaram quando bebês.
Há muitos anos atendi um casal de idosos no consultório. Eram pessoas muito simples, humildes, mas educadas e honradas. Suas roupas, ainda que desgastadas e desbotadas pelo tempo, eram alvas, engomadas e bem passadas a ferro, demonstrando o cuidado e apreço consigo mesmo.
A consulta de ambos era muito agradável e transcorria normalmente, quando já na despedida, o homem, olhando para o porta retrato com a imagem de minha família, me perguntou diretamente:
“doutor, como está minha netinha?” Arregalei os olhos. -Meu Deus! (Eu disse para mim). Subitamente, o coração palpitou, respirei fundo para me acalmar. Imagine o susto, pois, verdadeiramente, sem que soubesse, descobri naquele instante que eu estava diante dos avós biológicos de nossa segunda filha adotiva, mas o casal sabia muito bem quem eu era e parecia estar muito feliz por estar alí.
Mas, havia oito anos que aquela menina da foto era nossa filha por lei, não a mais sua neta. Assim, me deu um calafrio, deu um nó na garganta, engoli seco e minhas pernas tremeram debaixo da mesa, mas o casal nada percebeu. Apesar dessa súbita notícia, mantive a fleuma e lhes respondi com atenção e afeto.
Disse-me: “doutor, o senhor sabe, estamos velhos; gostaríamos muito de conhecer a nossa netinha. O senhor permite?
Pensei bem e lhe respondi: – Claro que sim! De minha parte, seria um prazer, mas eu teria que consultar, primeiramente, minha filha e esposa.
Assim eu fiz e para minha surpresa, concordaram sem questionar, talvez, convencidas pelo que exatamente eu havia sentido naquela manhã no encontro com os idosos.
Fomos muito bem recebidos pelo casal numa casa de madeira na periferia da cidade e lá estivemos por um par de horas. A nossa filha, depois de apresentada e satisfeita a vontade dos avós, logo se enturmou com duas outras crianças, sendo uma menina mais que velha de 12 anos e o menino na faixa de 5 anos; eram seus irmãos, filhos de pais diversos. Nada comentamos e não fizemos perguntas sobre a mãe biológica, tampouco o casal disse algo sobre por onde a filha.
Já no carro, na volta para casa, curioso, perguntei para nossa filha:-que tal, gostou de ter visitado os velhinhos? “Sim”, disse ela sem muito entusiasmo. -E teus irmãos? “Não sei bem”, repondeu. -Mas, por que? Indaguei. “Bem, a menina é legal, o menino, também mas ela fala só tristeza e parece que tem raiva das coisas”.
-Tu gostarias de voltar lá outro dia?
“Papai, posso lhe pedir uma coisa? Eu não quero mais voltar lá, não!” – Mas, por que?, insisti. Disse ela: “não me peça mais isso; eles não têm nada a ver comigo; minha irmã está lá na nossa casa”. E, surpreendentemente, para sua idade, completou: “minha família são vocês!”.
Nessa hora me deu um aperto no peito. Por algum motivo, eu estava aliviado. Meus olhos ficaram rasos d’água.
Após esse dia, nos nunca mais vimos aquela família; de fato, fora um encontro de despedida; alguns anos depois vim a saber que os velhos haviam falecidos.
A sua meia irmã, ainda bem jovem, já havia se tornado mãe e solteira e, em tempo de mídias sociais, localizou a irmã, nossa filha, mas a amizade entre elas não prosseguiu, certamente, não pela diferença de classes, mas porque tomaram caminhos completamente distintos.
“Ela e eu, somos pessoas muito diferentes, papai”, nossa filha tornou a dizer.
P.S. Atualmente, a nossa filha é acadêmica de medicina.
Paulo Rebelo, o médico poeta.