OS BONS COMPANHEIROS*

OS BONS COMPANHEIROS
Crônica de Paulo Rebelo

(A difícil relação de amor)

Amigo leitor-A, tenho uma curiosa e inusitada compilação de histórias encadeadas para contar e que, talvez, queiras escutar e que guardam uma estranha semelhança entre si, cujo diagnóstico, tratamento e prognóstico fugiram completamente à minha capacidade médica.

Eis o relato que tenho a fazer: durante a minha vida médica, atendi milhares de pessoas, mas guardo, talvez, uns cinquenta casos na memória. Foram exemplos que me fizeram refletir profundamente e mudar a compreensão de minha própria vida e mundo. Não falo de casos clínicos, falo de existência humana.

Há alguns anos, recebi um casal no consultório na casa dos 50 anos, ainda joviais e maduros, mas com o cenho abatido e tenso. O homem acreditava mesmo que era cardiopata e poderia morrer subitamente.

Tudo que lhe era perguntado, antes de responder, o casal se entreolhava, talvez, buscando o homem confirmação da mulher.

A consulta transcorria bem, todavia chamava atenção essa necessidade sua de aprovação por parte da mulher.

À medida que ampliava a anamnese ou questionário médico, vim a saber que o casal não era de marido e mulher e sim, de “exes”. Curioso, não? Até então, eu lutava para não fazer nenhum pré-julgamento.

O homem e a mulher estavam novamente casados, mas ele com outra mulher e ela com outro homem, respectivamente. Mantinham eles um peculiar relacionamento agora de “amigos”.

Uma vez que do ponto de vista orgânico, nada de anormal existia em seu coração, eram tão somente a sua ansiedade, tensão e transtorno do pânico que lhe provocavam uma forte sintomatologia física a ponto de achar erroneamente que poderia morrer, de fato.

Assegurado que estava saudável, no retorno, de posse de exames seus normais, já mais à vontade e sorridente, eu lhes perguntei brincando:
“Mas, seu Robério e dona Márcia, que história é essa? Não rola nenhum “FLASHBACK” entre vocês? Sorriram. “Não, doutor!” Ele respondeu. “E a tua atual mulher não tem ciúmes?” “O seu companheiro não cria caso, dona Márcia?” “Nós casais não somos propriamente amigos”, mas nos respeitamos.

“Doutor, sempre foi assim. Ele não faz nada sem me consultar!” “Eu confio muito nela”, disse ele. “E a tua mulher?” “Ela é inexperiente”, disse ele. Na verdade, ela parece que congela quando ele mais precisa dela, disse ela. O homem recebeu alta da cardiologia e com a devida orientação. Nunca voltou. Bem, nos bastidores, brincando, o médico diz que quando o paciente desaparece é porque ficou bom, trocou de médico ou porque morreu! Nunca soube dele durante alguns anos.

Aí um dia reencontrei no consultório um outro ex-casal de pessoais conhecidas e de fato, maravilhosas, ainda sob um longo processo de cura, cuja separação teria ocorrido por uma questão muito particular e grave, mas por respeito à sua dor, jamais procurei saber e ainda que soubesse, creio que em nada poderia ajudar, salvo escutá-los e se me dessem abertura, algo que nunca o fizeram. Ambos apresentavam taquicardia de fundo emocional e foram aconselhados a fazer psicoterapia individualmente, uma vez que o casal não doença orgânica. Eu os encontro sempre juntos. Relembrei do caso anterior, mas uma vez insondavel. A partir daí passei a elucubrar e me perguntar muitas coisas: o que fazem duas pessoas ficarem juntas a despeito da dor e ferimentos provocados um no outro. Nunca soube dizer. O interessante é que continuavam vivendo sob o mesmo teto, divindo tudo, menos a mesma cama. Perguntei-lhes como é possível? Disse-me a mulher que não brigavam mais. Fiquei ainda mais sem respostas. Alguém poderia dizer que poderia se tratar de mais um “casal sem vergonha”. Pura maldade.

Um terceiro casal de portugueses de Angola, na casa do 55, o homem e 44, a mulher, já divorciados, se aturavam. No Plano Cruzado, perderam quase tudo, permanecendo o ar de classe média alta empobrecida. Com a perda do único filho já adulto na casa dos 35 anos e sem filhos, morto por câncer no fígado, o casamento desmoronou de vez e restaram apenas os dois solitários e na solidão individual, imersos em solitudes. Ambos eram de uma inteligência superior, educados, cultos, agradáveis de se ver e conversarmos, mas estranhamente, discutiam na minha presença, principalmente, ela “arengando” o homem. Um diálogo repleto de ironia e zombaria e desmerecimentos. Eu intervinha dizendo que se comportassem, pois alí no meu consultório não era ring e eu não era delegado de polícia para fazer “acareação” dos dois. Ambos sofriam fisisicamente já com pressão alta de difícil controle, diabetes descontrolado e palpitações. Preocupou-me a dor anginosa de recente começo no homem. E, ela foi diagnosticada com TRANSTORNO BOPOLAR, doença mental que contribuíra para aumentar ainda mais a dificuldade de relacionamento do casal. Alegando que voltariam para Portugal, imaginei que nunca mais os veria de novo. Não foi o que ocorreu.

Assim fui conhecendo o drama humano do ponto de vista físico, orgânico, mental e suas repercussões sobre a saúde, mas nunca tive uma resposta e soluções cabais.

A vida foi transcorrendo, mas essas questões pululavam na minha cabeça e ao acaso, através de amigos em comum, conheci um casal “descolado”, também, separado e sofrido, sem filhos próprios, mas com filhos distintos de relações passadas, estranhamente, vivendo sob o mesmo teto que resignado disse para mim: “somos irmãos gemelares brigando por espaço próprio desde intrautero”. Continuei sem resposta. Perguntei: “perdão, por que continuam juntos?” Provoquei: “Amor?” Pensei: “não pode ser, pois amor não machuca”. E, sexo? “Não”, pensei; amor no sexo tem sabor de amor puro. Comodidade? Incapacidade de um recomeçar com outro alguém? O silêncio foi a resposta.

O leitor há de me perguntar o tem isso tudo a ver com medicina. Tem tudo: o homem é um ser biopsicossocial. Todos esses meus pacientes e conhecidos estavam doentes ou num perigoso processo de adoecimento. Todos tinham insônia e se queixaram de palpitações e crise hipertensiva. Um havia tido “Paralisia de Bell”, conhecida, popularmente, paralisia do rosto.

Um belo dia, recebo o comunicado que meu paciente português havia tido morte súbita. A sua dor física e emocional me vieram à cabeça. Onde eu teria errado?
Acabei sendo tomado de surpresa quando os demais casais, acredite, que não se conheciam ou muito mal entre si estavam lá no velório. Após cumprimentar a “viúva”, fui cumprimentar um por um que pareciam felizes em me ver.

A sua ex-mulher , “viúva”, tomou a palavra e, entre muitas coisas belas e profundas ditas naquele triste momento, entre lágrimas dos presentes, pediu “perdão” ao falecido que parecia lhe escutar; disse a todos a resposta que eu tanto buscava:

“Amor, nos éramos duas almas gêmeas, mas deficientes visuais que ardentemente precisávamos um do outro para se apoiar e seguir caminho”.

💐💐💐

Paulo Rebelo, o médico.

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