O RETORNO*

🖊🖊🖊

O RETORNO

Alguns pacientes nos deixam belas lembranças que o tempo não consegue apagar. Passo a relatar um desses casos.

Num fim de semana fui acionado por uma companhia marítima para atender um homem na casa dos oitenta e cinco anos que tinha tido um infarto do miocárdio a bordo de um cruzeiro, passando ao largo da costa do AMAPÁ a caminho dos EUA. O navio teve que voltar e fundear em Santana .

Ao contrário de sua mulher, trinta anos mais jovem, apesar da gravidade da situação, além do que ter sido desembarcado numa terra totalmente estranha, a sua serenidade era surpreendentemente espantosa. Aquilo me chamou a atenção. E assim se portou até que num dia a própria esposa, Helga, não suportando o choque emocional, muito abalada pela condição do marido, acabou internada.

A pedido, na falta de acompanhante para ambos, para a sua tranquilidade, coloquei-os lado a lado no hospital.

A relação médico-paciente não poderia ser melhor. Falávamo-nos em inglês, pois eu não domino o alemão.

Depois de duas semanas, com uma evolução favorável a despeito de duas cirurgias prévias de bypass coronariano, isto é, pontes de safena e mamária, marca-passo cardíaco, diabetes, hipertensão e insuficiência cardíaca, passei a programar a sua alta para que retornasse à sua casa.

Numa certa noite,
Herr Hans, muito à vontade, passou a falar de sua vida. Para minha surpresa,
havia sido soldado alemão na Segunda Guerra Mundial. Envolveu-se em batalhas mortais,
cujo olhar que expressava durante o relato era um misto de tristeza e resignação. Mas, os olhos brilhavam quando lembrava da infância.
Disse-me que a melhor terra do mundo não era onde a gente nasce e sim, onde somos realizados e felizes. A partir daí passamos a ser amigos sem formalidades.

Depois da guerra, como engenheiro mecânico, emigrou para os EUA onde fez fortuna. Não tinha ninguém mais além da esposa. Eram dois solitários. Há muitos anos embarcavam em cruzeiros de longa duração ao redor do mundo. Era a sua casa. Não pensava na morte, pois segundo ele, ele a vira de perto muitas vezes e não mais a temia.
Disse que se um dia morresse já teria vivido intensamente e se pudesse voltar no tempo, sim, a guerra foi um mal.

A minha preocupação passava a ser que estivesse bem para enfrentar a longa viagem de volta.
Na sua presença troquei impressões médicas com colegas nas suas especialidades, coloquei-o na esteira ergométrica para avaliar sua condição cardíaca. Isso parece tê-lo impressionado muito.

E assim ele foi p sua casa sem antes dizer: “eu retornarei à Macapá”. Não o levei a sério.

Um dia, quase doze meses depois, alegre, recebo um email seu. Estava vivo!
Relatava que depois daquela nossa conversa, graças a mim, passou a escrever suas memórias. Sentia -se “leve”.

Algum tempo depois, um email seu dizia: “estou a caminho da Amazônia no HOLLAND CRUISE LINE. Estamos indo para te ver e conhecer tua familia”. “Nossa, que coisa boa”, pensei

Após passarmos no Forte São José e passearmos no MARCO ZERO, recebemos o casal em nossa casa p um lauto almoço à base de FILHOTE e FILLET, saladas e sorvetes locais. Saborearam como nunca.

Ajudado por Herbert, meu professor de alemão, fiz um discurso de boas vindas. HANS parecia um avô distribuindo presentes e poucos dólares para os meus filhos que ainda eram crianças.

Antes de partir emocionado e sereno, disse as seguintes palavras: “nunca em minha vida imaginei ser tão bem tratado; que fizesse grandes amigos no AMAPÁ”. Agradeceu profundamente por tudo que lhe foi proporcionado para que continuasse vivo, principalmente, pelo aspecto humanizado da atenção médica e de enfermagem. “Que diferença: nos EUA, meus médicos não se conhecem pessoalmente e jamais conversaram entre si sobre a minha grave situação médica. Aqui é diferente; nunca tinha visto isso!”, disse.

A sua partida foi alegre, mas foi um misto de saudosismo e adeus.

Algum tempo depois, abro o meu email. Ao lado das muitas fotos aqui tiradas, Helga, já viúva escreveu: “o nosso HANS se foi. Ele te amava muito”.

Anexos estavam os arquivos de suas memórias.

Paulo Rebelo, o escrevente do tempo.

Leave a Reply

Deixe o seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *