O RECOMEÇO*

O RECOMEÇO
Por Paulo Rebelo

A pandemia segue deixando um rastro de tragédias, lamentavelmente.

Atendi em momentos diferentes pessoas que nem de longe sabia serem familiares e que estavam em momentos distintos da convalescença e luto pessoal.

Há um mês, examinei um homem na casa dos 40 anos. Estava visivelmente abalado psicologicamente e debilitado fisicamente pelo diabetes e hipertensão q passou a ter com a COVID-19. Havia passado trinta e tantos dias num CTI e me procurou por dor no peito, palpitações e faltar de ar, além da síndrome da fadiga crônica. Relatou q acontecera uma tragédia na sua vida e começou a chorar antes mesmo q passasse a falar de seu drama. Escutei. Pensei: “é muita dor para um ser humano só suportar”.

Recentemente, outro dia, entraram mãe e filha p consulta. Ela, na casa dos trinta e poucos e a menina, adolescente.

O correto é o atendimento de um paciente de cada vez. Ocorre q por ignorar a regra, às vezes, casais ou pais e filhos querem aproveitar o momento para se consultar de uma só vez. Nada contra. Pede-se q um mantenha-se quieto e em silêncio, enquanto o outro é atendido, senão vira tudo menos consulta, porém ocorre que o aquele diz, pode se mostrar fundamental para compreensão de um fenômeno, ainda mais quando ambos estão envolvidos e nervosos.

As queixas de ambas eram semelhantes e são comuns após a COVID-19: dor no peito e no corpo e fraqueza geral, variando entre os indivíduos, dependendo da idade, da gravidade da infecção e doenças como pressão alta, diabetes, autoimunes, do coração e outras. A menina era asmática e a mulher tinha lúpus.

Ambas tinham estado internadas juntas; a filha melhorada e no hospital, estava mais como companhia da mãe, porque não tinha com quem ficar em casa. Pensei: “e o pai?”

Antes que eu perguntasse, disse; “aconteceu uma tragédia nas nossas vidas. Meu marido quase q morre da COVID-19 e agora que está se recuperando. Para completar, durante o tempo q ele esteve gravemente internado, a sua mãe e única irmã morreram da COVID-19, também! E isso sem q ele soubesse. E, eu tive que cuidar de tudo, inclusive, dos funerais. Acho q adoeci assim”.

Ambas estavam entristecidas. A mãe com os olhos marejados. Aos poucos fui tentando ligar as pontas, relembrando algo parecido.

O olhar vazio e perdido, ainda adoentada, dizia q procurava energia para apoiar o marido a reagir. Num estalo, percebia que ela falava exatamente daquele mesmo homem deprimido e desorientado que eu havia atendido no outro dia.

“A gente precisa de ajuda para recomeçar, doutor”, disse ela; “é por isso que estou aqui com o senhor”.

Paulo Rebelo

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