O PERDÃO

O PERDÃO
Crônica de Paulo Rebelo

Acredite, desde muito cedo eu sabia o que queria ser quando crescesse. Nada de policial, jogador de futebol ou astronauta e sim, doutor! E isso parece que tinha uma finalidade; era o meu destino cuidar de meu pai até seus últimos dias.

A primeira boa impressão me foi provocada pelo meu pediatra, o doutor Bernardo Santos. Só de ser examinado por ele, eu já parecia ficar melhor.

A segunda e melhor impressão ainda ocorreu quando meu pai Evandro, vítima de infarto do miocárdio, foi muito bem tratado pelo seu médico, doutor Franklin Albuquerque. Foi quando aprendi de perto o que é amor ao próximo.

Naquele tempo, há quarenta e tantos anos, o tratamento para a sua condição consistia mais no repouso para acelerar a cicatrização do coração. Não havia angioplastia nem cirurgia de ponte de safena, principalmente, em Belém do Pará.

Todavia, sendo a família pobre à época, tudo não passava de devaneios de criança, pois nos faltavam meios.

O fator decisivo ocorreu quando adolescente, eu conquistei um bolsa de estudos integral por uma entidade de intercâmbio estadunidense, graças à dona Lila Ericksen, chamada Youth for Understanding, para estudar o último ano do ensino do segundo grau nos EUA; foi lá que eu bati o martelo: “vou ser médico!” Pensei: “se eu cheguei até aqui, posso ir mais longe”.

A minha decisão de fazer medicina, porém foi de encontro ao gosto de meu pai, que gostaria que eu abraçasse e desse seguimento à profissão dele, que depois de muito tempo, passou a lhe dar melhor renda: prático da bacia amazônica.

Ao decidir casar com Bernadete já grávida de nosso primogênito, ainda acadêmico de medicina, ele, contrariado, nem no casamento foi. O que esperar de um homem egresso de uma família mais pobre ainda, arrimo de família, criado às margens do Rio Tapajós?

Não sabia o que era pedir desculpas nem perdão, mas era bondoso, emotivo, temperamental e espontâneo, por isso surpreendia.

A reaproximação ocorreu quando o Paulo Bernardo, nasceu, tornando o menino o seu xodó.

À medida que eu me emancipava profissionalmente, os demais filhos nascendo, o meu pai foi se tornando o meu maior garoto propaganda por todo o norte, introduzindo-me no meio marítimo para atender tripulantes e turistas estrangeiros, embarcados nos grandes navios que navegam pelo Rio Amazonas.

Coincidiu com o fato dele desenvolver uma série de doenças como asma brônquica, o diabetes e, principalmente, insuficiência cardíaca insidiosamente, reflexo daquele maldito infarto no passado.

A partir de então, naturalmente, passei a ser seu médico principal.

Foi o período mais belo de nossa relação pai e filho, estendida para minha própria família. Feliz e realizado, sua frase marcante era: “o que é que eu quero mais?”

Como coroação fizemos ele, minha mãe e eu um tour com um grupo pela Europa. Ocorreram muitas coisas curiosas, mas a coisa mais engraçada aconteceu quando comparou Veneza à Breves, como sendo Veneza “uma Breves melhorada” ou quando indignado por terem cobrado dele na Piazza San Marco, cinco dólares por uma garrafa de água mineral e um covert artistico que nem percebera, disse ao garçom italiano num bom português: “companheiro, isso é um furto; tu és um ladrão!” Curiosamente, o italiano compreendeu muito bem o que meu pai dissera, pois teria escutado: “compagno, questo è un furto; tu sei un latro!” Ou ainda, fugindo ao meu controle, de pilequinho, no almoço em grupo, numa roda, disse alto que eu não ia com a cara do meu companheiro de quarto, o que era uma verdade, mas não para ser dita publicamente. Isso foi piada para a viagem toda.

Antevendo o desfecho pior com o passar dos anos, tratamos de aproveitar a vida; fui condescendente com que ele ainda tinha de algum prazer: a cerveja e o churrasco, porém agora mais regrados.

Às margens do Rio Araguari, como todo caboclo amazônida, armava sua rede à sombra, no tronco de árvores.
Após banhar-se com os netos, almoçava um belo tambaqui na brasa e a seguir punha-se a dormir e roncar à tarde inteira. A brisa e o marulho se encarregavam de lhe dar a paz. Ao despertar no fim de tarde, próximo de retornarmos para casa, perguntava: “meu filho, eu dormi, héim?” Risada geral.

A despeito de já manifestar limitação física, não se entregava, porém já não era o mesmo cara “pau pra toda obra”, que não dependia de ninguém e muito me ajudou até economicamente.

Trabalhou até morrer em consequência de um AVC. Dizia que queria morrer assim: trabalhando e que fosse enterrado na Ilha do Mosqueiro no Pará, à sombra do cajueiro, cuja fruta faria sua cachaça.

Algum tempo antes de morrer, já enfermo, na presença da família, com lágrimas nos olhos, agradecido pela maneira como eu cuidava dele, como já estivesse se despedindo, disse perdão pela primeira vez e sabíamos porquê: “preto (meu apelido), muito obrigado por tudo, meu filho!

Tu és o filho que eu nunca pude ser para o meu pai”.
💐💐💐

Paulo Rebelo, o médico poeta.

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