O NÁUFRAGO*
O NÁUFRAGO
Houve um tempo em que não sei precisar exatamente quando, como nem o porquê, acreditei eu que já estivesse maduro, homem feito e lapidado através de incontáveis batalhas que duramente travei na vida, por conseguinte, imune fiquei aos tempestuosos ventos da paixão.
Posto que n’alma, feridas agora cicatrizadas, insidiosamente cri eu pia e secamente que isso fosse algum tipo de atividade lúdica, às vezes, brincadeira infantil, por certo, de mau gosto na maturidade, quando, num caminho sem retorno, adoecem corpo e mente, muito padecem, literalmente, morremos como galhos secos mumificados!
Eis que num certo dia como outro qualquer, juro por tudo o que é mais sagrado, creia-me, sem que eu desejasse ou sem que sequer soubesse que no recôndito de minh’alma ardentemente desejasse, jazendo em mim num eterno sono profundo, repleto de sonhos hibernados, aflorou como lavas incandescentes de um vulcão há muitos séculos adormecido, uma incomum e arrebatadora paixão.
Em meu coração, outrora sem luzes um palco, terra seca e inóspita para semear o amor, como que depois de longas noites frias e desoladoras de inverno inclemente, agora sob o sol primaveril, explodiram campos idílicos em miríades de aromas, luzes e cores de todos os gêneros nunca d’antes vistos nem sentidos por um ser humano; como um belo pássaro, meu corpo inteiro gorjeou num oceano tomado de alegria.
Exímio conhecedor dessa armadilha fatal que é a paixão, logo eu supus se tratar de mais um desses ardilosos e infrutíferos jogos do amor com os quais eu sempre lidara com maestria, soberana e enfadonhamente os esnobava.
Continente, firmemente cerrei um gigantesco paredão de concreto e do mais puro aço até então conhecido, contra esse autodestrutivo impulso para me proteger de algo que outrora me fizera sofrer, cujo saldo final me deixara assim; sem nenhuma ilusão com o amor, logo eu amadurecido, quiçá marmóreo e embrutecido!
Além disso, contudo, nem os avisos de perigo dos instantes da minha personalidade que se digladiavam ferrenhamente para me salvar, nem mesmo os sábios conselhos de meus fiéis amigos foram capazes de impedir que essa descomunal vaga varresse meu corpo, agitando-me para todos os hemisférios, ao sabor dos ventos fortes e cálidos; assim afogado em mim mesmo, insano mais eu a desejava ao desvario inaudito.
Tudo em vão, pois nenhum remédio parecia curar ou mitigar a dor prazerosa que teimava fingir não sentir advinda de intensas e inefáveis fruições corpóreas e da alma que com aquela mulher loucamente buscava eu sempre repetir; a boca seca adstringente, a aflição opressiva sobre o meu peito asfixiado, palpitações excruciantes; pensei: mil vezes morrerei desse e por esse amor!
Parado no tempo, extemporâneo, portanto fiquei fora de compasso num mundo coevo. Entretanto, ela e suas densamente fugazes mensagens de texto de amor como se odorizadas de nossos suores, nos descrevendo entrelaçados num só corpo, despudoradamente sem limites que vinham e iam à velocidade da luz, na forma de flashes, símbolos e imagens erotizadas, malmente sedimentavam logo me afogavam num êxtase que nunca havia desse modo experimentado.
Mas, curiosamente, um dia, sem que eu esperasse, assim como ela veio ela se foi; subitamente emudeceu num atroz silêncio, em mim criando um abismo, acreditando eu como se há séculos de amor tivessem passados num átimo de segundo, atônito fiquei entregue à inanição sentimental.
Atropelado e mortalmente ferido por uma nova forma de amor, superficial, infinitamente veloz, volátil como o ar, consumista, completamente estranha e assustadoramente nova para mim, fui tomado por paralisante surpresa.
Absorto, desalentadoramente perdido, depois de muito vagar, fui atirado aos mares revoltos como a mensageira garrafa de um náufrago à deriva, sujeito às imprevisíveis correntes marinhas, torcendo para que um dia, em algum lugar distante qualquer, noutro tempo, quem sabe menos turbulento, venha eu a ser resgatado pelo verdadeiro amor que agora sei, de fato, jamais ter vivido!
Paulo Rebelo, médico poeta.