O FILHO DE DEUS (Confissões de um Médico)*
🖋O FILHO DE DEUS (Confissões de um Médico)
CRÔNICA /.
A caminho de casa. São 9 da noite. Estou cansado… chega por hoje. Dei de mim o que pude no consultório. Mas, nunca é o bastante, eu sei (É o que me diz a minha consciência para me atazanar).
Dize-me tu, consciência, então: o que afinal deixei de fazer? Pior, o que fiz de errado? Que sentimento horrível de culpa é esse que me impinges impiedosamente? Que mal eu fiz enfim? O que fiz para que tu, ó minha consciência me trates como réu? Por que me parece que há algo feito pela metade, que preciso refazer ou recomeçar tudo do zero, como seu eu levasse a minha vida com desídia? Não posso sequer dormir em paz e, pior, nem ter o direito de errar…
Faz meia hora que rodo pela cidade vazia pela pandemia da COVID-19. Ontem, foram sete mortos. Vi pela televisão. Hoje, houve mais. É uma cidade fantasma que nem eu me sinto agora: com um deserto; um fantasma em carne e osso!
Desde a noitinha, no consultório, eu já rodava na “reserva de paciência”, buscando energia do fundo do tacho. Cá estou eu rodando com tanque vazio de fé, sendo que o nível da bateria zerou. O rastilho de esperança molhou.Tenho a impressão que vou parar no meio do caminho, sozinho…
O consultório já fechou, mas é tão óbvio; a clientela TODA veio comigo; está aqui dentro no meu carro confabulando comigo, todos falando ao mesmo tempo, buscando pela minha atenção, dizendo: “doutor, me salve! Já foi pior; costumavam todos a deitar na minha cama para conversar noite adentro, com a cabeça no meu travesseiro. Tenho vontade de gritar: “EU, TAMBÉM, ESTOU ENFERMO” (também, sou filho de DEUS). Então, ensine-me a chorar; eu quero, mas não consigo. Por favor!
Nem almocei. Apenas tomei um café pingado. Uma sensação estranha toma conta de mim, essa de desolação, a triste condição humana. Não é depressão; é uma inanição de minha alma que foi sendo dia após dia consumida aos poucos, pingando gota a gota e me drenando pelo ralo da pia, me deixando exangue. Parece até pior; não tem cheiro e, eu respiro um ar que não existe, parecendo que, de fato, já estou morto e, andando em círculos e a esmo e revendo em cine loop todos aqueles que se já foram, Desfilando diante de meus olhos cheios de lágrimas. Alguém pegou firme minha mão, me puxou e disse: “não me deixes morrer”. Quisera falar com eles; é loucura, pois já não estão mais entre nós. Fiz o que pude. Perdão por ter como médico falhado!
Hoje, vi muitas tragédias provocadas pela COVID-19. Assisti a viúva, cuja filha única (ambas adoeceram) morreu. Atendi o filho que se culpa atrozmente de ter morto a mãe, Por ter-lhe infectado. O seu coração acelerava tanto e a galope e que dava-lhe a impressão de despencar no desfiladeiro para a morte. Atendi aquele que não consegue mais dormir e, quando mal consegue, desperta subitamente em pânico, imaginando que está no respirador artificial. Disse-lhe: “shshsh, calma, foi só um pesadelo; “acalma a tua alma, meu irmão, tu és um sequelado emocionalmente de guerra. Não levaste um tiro sequer, mas estás mortalmente ferido. Eu sou o teu remédio!”
Nunca tinha prescrito tanto receituário TARJA PRETA. Prescrevi até para mim mesmo. Agora eu tenho uma pálida ideia do que é sofrimento humano!
Vi quase tudo que Deus e o diabo tinham para mostrar na face da Terra. Não pode haver coisa mais medonha do que isso! Não sei mais o que dizer. Parece que sequei.
A caminho de casa, passei a divagar sobre a condição humana; a minha própria indistintamente.
Assim, deixe-me chorar, minha consciência, até desafogar competamente a minha alma! (Isso tudo vai passar).
Paulo Rebelo, o médico poeta.
P.S. Um tributo aos médicos e demais profissionais da saúde, bem como a todos aqueles que já não estão entre nós. 💐