O BRUXO

O BRUXO
Crônica por Paulo Rebelo

Eu já havia revirado a paciente de todo o jeito em busca do diagnóstico de seu mal, que consistia numa extensa lista de sinais e sintomas desconexos entre si, que de antemão apontava para transtorno psicossomático ou seja, de fundo puramente emocional. Havia trazido consigo um calhamaço de receitas e exames anteriores. Tanto os exames laboratóriais quanto os de imagem atuais e atigos eram inexpressivos ou negativos. Além de outros médicos, ela, coitada, já tinha tomado chás caseiros, banhos medicinais, passado pela cartomante, pela “fogueira santa”, um entre outros rituais de uma igreja neopentecostal e até pai de santo, sem respostas e cura para o seu mal.

Antevi que teria muita dificuldade em resolver o seu caso. Aliás, as pessoas não necessariamente doentes que mais dão trabalho ao médico são: o ateu de um lado, o religioso “extremista” de outro e no meio o intelectual (pedante) ignorante ou vice versa. Todos céticos do tipo ver para crer como São Tomé; a mulher era do último tipo.

Antes é necessário dizer que, quando um médico diz que a doença de um paciente pode ser de origem psicológica, ele quer dizer que um fato, acontecimento ou situação traumática pode ser o responsável pelo início e perpetuação de sua doença, que não necessariamente tem uma causa orgânica, isto é, palpável; não seria um câncer, um infarto nem um derrame e etc. Todavia, depois de algum tempo a partir de doze meses ou menos, caso o problema pessoal, familiar ou outro não seja resolvido, aí sim, a pessoa poderá desenvolver doença, de fato, surgindo gastrite, colite, AVC, hemorragias na pele, queda de cabelos, arritmias cardíacas e etc. Já a doença mental não demonstra nada específico nos exames, o que, curiosamente, deixa a pessoa mais ansiosa e desnorteada pela falta de diagnóstico claro e solução. Pergunto: como alguém pode ter tantas queixas e os exames serem negativos?! Uns hão de pensar que é um “encosto”. Assim não é de se estranhar o porquê a pessoa buscar qualquer coisa, por mais bizarra que seja, para aliviar o seu sofrimento.

O trabalho do médico, então, é ajudar o-a doente a compreender o fenômeno e que a cura o ou controle de sua enfermidade depende fundamentalmente dele-a.

Após exaurir o questionamento técnico, perguntei-lhe: “dona Cristina, responda-me, por favor: quem é a mulher Cristina? Quais são os seus desejos e sonhos por realizar como ser humano? O que falta para a mulher Cristina para ser feliz?”

Pronto! Seus olhos se arregalaram. Tomou um choque de realidade. Foi como um “BOOT” para reiniciar computador. Como ela disse depois, jamais esperaria que um médico lhe fizesse um questionamento tão pessoal quanto empático, demonstrando paciência e real interesse em lhe escutar, sem lhe interromper ou condenar. Sem ação, tomada de emoção, aos poucos passou a falar de sua vida em 15 minutos profundas confidências, o que lhe transcorrera ao longo de 25 anos, desde quando esperava que o casamento fosse a sua libertação e não o seu calvário. A sua história é o enredo de muitas mulheres sofridas e abandonadas à própria sorte. No caso dela, abusada e negligenciada desde a infância até a separação conjugal, quando as sequelas físicas e emocionais apareceram e se intensificaram havia muitos anos, ao tornar-se pai e mãe de seus filhos ao mesmo tempo e às duras penas, de dona de casa, com muito esforço tornar-se professora num longínquo interior, algo notável na sua desvalida condição. Mas era tarde; o dano psicológico já estava consagrado.

À essa altura lagrimava e a voz entrecortada e rouca engasgava, lhe impedia de falar. Segurei suas mãos trêmulas, pálidas e geladas. Ela era uma sequelada de muitas batalhas e buscando resgatar nela assertividade e esperança, quando lhe disse que iria ajudá-la a ganhar a sua guerra, ela agradeceu a Deus, beijando as minhas mãos.

O fato é que necessitava de medicação controlada, conhecida como “tarja preta”. Auto didata e dura na queda, inicialmente, quis demonstrar resistência, mas se convenceu de que era o melhor para si depois de tanto sofrimento ao longo de décadas.

Ao retornar, duas semanas depois, parecia mais jovem. Seu cenho menos tenso, ombros erguidos, estava de salto alto, com unhas bem feitas e pintadas e com batom nos lábios. Com alegria de me ver, sorrindo disse na sua ingênua ignorância: “doutor, o senhor é um BRUXO”. Tomei um susto. Surpreso e muito curioso, disse-lhe: “dona Cristina, já fui chamado de anjo, santo, juiz de paz, psicólogo, psiquiatra, advinho, mas BRUXO, nunca!”

Ao que se apressou para se corrigir apologética dizendo: “suas palavras são poções; o senhor fez um encanto na minha vida”.

Paulo Rebelo, o médico poeta.

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