O ATEU QUE FALOU COM DEUS*
O ATEU QUE FALOU COM DEUS
Por Paulo Rebelo
O texto a seguir é real e resolvi escrevê-lo, antes que se perdesse longe na minha memória. De fato, o título da crônica, que parece um conto é curioso, mas foi exatamente isso que ocorreu; é a mais pura verdade ou baseado em fatos reais.É que com o passar do tempo, alguns detalhes já começam a desaparecer lentamente de minha consciência, deixando-me em dúvidas entre o que fora real e agora o que parecia ser o imaginário, pois na ânsia de descrever a realidade, passei a preencher essas lacunas, cavando fundo na memória doces lembranças daquele encontro, conferindo-lhe vaga sensação de ficção; um realismo fantástico.Aconteceu há alguns anos e sou testemunha viva de uma das coisas mais belas, que já presenciei em vida, ainda mais tendo estado envolvido. Isso me mudou, também.Atendia no consultório, quando no fim de tarde me deparei com um paciente de meia idade, acamado em decúbito dorsal* numa maca. Estava ali para realizar um risco cirúrgico ou seja, estabelecer as chances de complicações cirúrgicas. Era portador de múltiplas hernias de disco, duas delas incapacitantes pela terrível dor que sentia, com irradiação para as pernas, quando sequer podia se sentar. Estava apenas com um avental e fralda descartável. Estava com “aspecto vencido”, isto quer dizer, não estava asseado. Seu cabelo em desalinho, barba e unhas por fazer, pele oleosa, tinha um odor desagradável. Ele mesmo, constrangido, pediu-me perdão.Apressei-me em liberá-lo logo para que voltasse para o apartamento, visto que era objeto de curiosidade e consternação por parte dos demais pacientes e familiares na ante sala do consultório. Era portador de diabetes e hipertensão, que diante das circunstâncias estavam “descontroladas”, mas uma vez regularizadas, ele estaria apto para ser submetido ao ato operatorio proposto. É o que me pus a fazê-lo.Ele era psiquiatra. Queixava-se de seu infortúnio. Não trabalhava há três semanas e tudo levava a crer, que tão cedo não poderia trabalhar. Estava muito contrariado, pois o seu convenio ainda não havia liberado o seu procedimento: microdiscetomia por microscopia, uma cirurgia minimamente invasiva e cara, o que não tinha dinheiro para tal. A sua hernia seria removida. Senti que ele gostaria de conversar comigo. Prometi-lhe que eu o visitaria. O tempo passou. Assim o fiz algumas vezes, enquanto a cirurgia nada de ocorrer. Ele sentia-se melhor em falar com alguém, que o compreendia. No fundo, sentia empatia por ele.Uma das piores coisas para si era urinar e defecar na fralda descartável, ainda mais sendo higienizado no leito pela enfermagem, notoriamente, mulher. Sentia-se impotente e muito humilhado. Era vaidoso, mas isso nada valia nessa hora. Sua discreta arrogância foi sendo colocada à prova. Passou a ficar melancólico.Assim com o passar dos dias, sentindo-se confiante comigo a seu lado, um pouco mais animado contou-me a seguinte história: disse ser ateu (de carteirinha), mas que um grave incidente, que havia ocorrido com ele há alguns meses, somado ao infortúnio, que agora se sucedia havia abalado profundamente seu ateismo ou agnosticismo. Sua voz embargou, seus olhos marejaram. Engoliu seco, respirou fundo, enquanto fechava os olhos. Ficou pálido, parecendo desmaiar. Ele fisgou minha completa atenção. Destaco que era um homem educado, inteligente, culto com uma argúcia de pensamento crítico e de fina ironia. Um sujeito interessante. Difícil controlá-lo ou dobra-lo, mas pasme, eu consegui. Era músico, escritor e pintor. Era um indivíduo eclético, envolvente e charmoso com as mulheres. Ele como psiquiatra as entendia muito bem. Imagino que uma ou outra ficassem num estado de enlevo por ele, algo comum quando veem na figura do médico o seu salvador. Curiosamente, ele estava no terceiro casamento ou união, que não ia bem. Dizia sorrindo, que todas as suas ex-mulheres se davam bem entre si. Não me lembro de ter falado em filhos.Assim que passou a confiar em mim, sua fala, antes grave e sombria pela dor que tinha, tornou-se uma prosa agradável e fácil. Passou a ficar eloquente e sorridente, como se não tivesse nada. Tornei-me seu confidente; aí estava o psiquiatra que se tornou meu paciente psicológico acidental.”Dr. Paulo Rebelo”, disse-me. “Te contei que me colocaram um revolver na minha testa, me ameaçaram de me matar e me roubaram tudo?” Meus olhos arregalaram.O médico psiquiatra era um homem livre. Eu poderia descrevê-lo com um praticante do ZEN BUDISMO, experenciado na forma simples “do viver aqui e agora”. Era intempestivo e intenso. Tudo era já para ontem! Imagine conviver com um indivíduo assim.Assim parecendo em busca do NIRVANA, mochileiro, um dia viajou sozinho até o México para conhecer in loco as origens dos povos pré-colombianos, em especial, as pirâmides ASTECAS. Havia se hospedado num HOSTEL, próprio para turistas estrangeiros e aventureiros com pouco dinheiro, segundo ele, “para se enturmar e praticar o inglês”. Tudo ia bem até que lá, numa madrugada, foi assaltado por desconhecidos, que lhe deixaram sem dinheiro, cartão de crédito, documentos como RG, passaporte e celular. Ficou apenas com a roupa do corpo. A atenção, presteza e diligencia do proprietário e funcionários da hospedaria logo se transformaram em inferno, quando ele passou a desconfiar, que o assalto havia sido obra do pessoal ou cumplices do HOSTEL, ainda mais quando fez queixa na delegacia de polícia. Acabou sendo ameaçado de espancamento e foi posto na rua.A partir daí, do ódio, sobreveio o desespero e longe da embaixada do Brasil, com o passar de poucos dias, sem saída, o completo abatimento do moral e por fim, humilhado, da moral.A primeira vez que pensou em DEUS foi quando alguém lhe fez a caridade de lhe emprestar o celular, e ele aflito ligou para a mãe octagenária. Foi quando ela lhe disse: “meu filho, reze a DEUS”, ao que ele retrucou: “mãezinha, eu não sei rezar!” “Então, apenas peça a DEUS, que é a divina providência. Repita comigo”, dizia ela.Assim ele fez, ainda que cético e sem nenhum fervor; passou a noite inteira rezando num banco do aeroporto. No desespero, havia tentado que uma companhia aérea lhe desse um crédito para que ele pagasse a passagem “logo que voltasse ao país”. (Nessa hora, ele olhou para mim e riu de si mesmo). Passou, então, a contar com a bondade de terceiros para se alimentar.Acredite se quiser: segundo ele, que não acreditava em DEUS nem em milagres, um senhora turista portuguesa, escutando o seu preito como súplica, se apiedou de sua dor e pagou no CC sua viagem até Brasil, e ainda lhe deu 50 dólares na época para suas despesas. Para ele, ela teria sido um anjo de DEUS.A viagem toda ele, compungido, rezava agradecendo ao CRIADOR pela graça alcançada. Pela primeira vez na vida, ele percebia que o seu amplo conhecimento e posição social não tinham nenhum valor diante da grandeza do extraordinário sofrimento experimentado por ele.Fez uma longa pausa.
Ali estava eu em silêncio, mas maravilhado, presenciando a transformação de um homem naquele momento, moribundo, em um outro homem muito melhor apenas pelo poder da palavra, que deveria estar sendo emanada a partir da intercessão do Espírito Santo.
Ao final de seu relato para mim, ele chorava copiosamente e soluçando dizia: “eu falei com DEUS!”
Paulo Rebelo, o médico poeta.*
Deitado de costas.