O APONTADOR DO TEMPO*

O APONTADOR DO TEMPO

 

Aquele homem misterioso sentado na esquina da vida anotava a cada segundo o registro de cada sentimento pessoal dos passantes. Sem que se percebesse, mas já se desconfiava, ele escrevia de tudo, desde os largos sorrisos até as lágrimas que rolavam dos olhos dos indivíduos, computando tudo para um grande banco de memória a ser consultado pelos interessados. Tudo era de fácil acesso, mas por falta de interesse da maioria, nada se buscava; muito se perdia como um tesouro submerso nas profundezas dos mares ou curiosamente, seus proprietários exaltavam alguns traços, omitindo outros, escondendo ou distorcendo fatos, porém estava tudo lá registrado pelo homem, comprovado pelo tempo. Nada passava despercebido e no ser humano, ainda que dissimulasse, restavam as marcas das alegrias e sofrimentos no corpo e na alma.

Um dia, porém ocorre que em meio a tanta correria, entre milhares de seres humanos que por lá passavam, abatido pelo sofrimento, alguém parou naquele cruzamento e notou pela primeira vez a presença daquele homem sereno, célere e firme que jamais descansava, fazendo o seu trabalho de apontador. E aproximando-se dele, pediu-lhe um copo d’água, sentou-se ao seu lado. Indagou sobre a natureza de seu trabalho e curioso, o questionou se o seu tempo estava ali por ele registrado.

O homem descortinou um longo e acidentado registro daquele sofredor. O tempo, então, parou. Antes, perguntou ao homem quem ele era exatamente, o que era realmente o tempo e por que ele envelhecia independente do passar do tempo ou se era o tempo que o fazia envelhecer.

Nesse interregno o apontador desapareceu, deixando a memória daquele homem aberta e revelada como um filme a sua vida inteira.

Ao ver tantas coisas bonitas ao lado de tantas coisas feias que teria praticado, algumas verdadeiras maldades mesmo, não aquelas que a gente faz na primeira infância, mas aquelas coisas feitas de modo consciente e que podem ferir de morte emocionalmente alguém, o homem muito chorou e só ele sabe o porquê.

Após assistir todo o seu filme, quis apagar muitas coisas que agora relembradas lhe faziam muito mal. Não o pôde. Chamou pelo homem que parecia escutar-lhe, pois algo lhe dizia que ele estava próximo. Era o que dizia seu coração. Logo ele que jamais acreditara em nada que não fosse nele mesmo. Quis contestar com ele que o seu registro estava equivocado, que não fora bem assim, que foi mal interpretado, que estaria sendo vítima.

As suas palavras se precipitaram num enorme vazio existencial. Caindo em contradições, sentindo-se perdido e abandonado, gritou pela primeira vez por DEUS, logo ele que jamais teve qualquer amor por ELE, pois se dizia “semi-ateu” e que DEUS, misticamente, estaria nas nuvens, nas plantas e nos animais.

Fez-se um enorme silêncio. Quis ele que o tempo avançasse rapidamente, mas estava congelado, aguardando por ele, que tudo fizesse sentido, que o tempo fosse o seu amigo e não o seu inimigo, que voltasse atrás, que não fosse alguém a ser simplesmente descartado de sua vida ou ainda completamente desprezado, o que tornou-o alienado e insensível.

Então, digladiando-se com sua memória e consciência, exausto, adormeceu. Em sonhos o homem reapareceu para responder suas perguntas.

Avisou-lhe que o tempo é apenas um pano de fundo, uma moldura para a vida. É uma criação sua sobre a qual a vida caminha. Já basta uma vida que é um tempo único, pois ninguém suportaria viver para sempre. Quantas pessoas seriam necessárias para moldar o nosso caráter? Quantas pessoas amaríamos? Quantas dores do mundo poderíamos suportar numa longa existência de mil anos? Isso nos levaria a loucura. É como uma viagem de ida sem volta; um início, meio e fim. Uma longa viagem se tornaria enfadonha e sem propósito. Há “passageiros” que atropelam-se não vivendo vida alguma ou querendo mais vida do que possa carregar consigo. Que cada ser humano surge com o seu próprio tempo com contagem regressiva. Disse-lhe que ele envelheceria mesmo com o passar do tempo e mesmo q não houvesse o tempo algum, isso uma formulação humana. Que seu corpo é só uma máquina viva de pensamentos, sentimentos e memória. Tudo ao redor de sua vida como a luz, o alimento, a água, o ar existe por ele. E ocorre do indivíduo simplesmente não caminhar ou caminhar desconectado do tempo e espaço ou criar uma realidade que é somente sua e com frequência dizer que não tem tempo ou está atrasado.

Assim, acordando de um longo sono profundo, despertou, imaginando nitidamente ter conversado com o APONTADOR DO TEMPO. Acertou os ponteiros de relógio, antes acertando os ponteiros de sua própria vida e disse para si mesmo: ELE tem razão.

 

PAULO REBELO

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