APLAUSOS*🌷🌷🌷
APLAUSOS 🌷🌷🌷
Texto por Paulo Rebelo
A família já tinha sido avisada pelo médico que o coração do patriarca estava cansado e que poderia parar de uma hora para outra, todavia a despeito da gravidade da enfermidade, visto que apresentava-se lúcido e com vontade de viver, empenhou-se muito em dar-lhe uma melhor condição de vida.
Em particular, informou às duas filhas mais velhas que faria algumas modificações na prescrição de seu médico assistente que não fora encontrado, no momento, que buscaria dar-lhes algumas orientações nutricionais básicas e de atividade física para o pai.
O médico não furtou-se de dar nenhuma informação por mais difícil que fosse. Avisou-lhes que aquele senhor idoso já na casa dos 75 anos poderia ter morte súbita, edema agudo pulmonar e sequer dar tempo de chegar ao hospital e por fim, que poderia dormir e acordar com AVC-acidente vascular cerebral, podendo ficar inválido e vir a falecer de complicações várias. O dia de ontem vivido foi uma vitória e vivendo hoje, uma benção, disse.
As duas senhoras, entristecidas, ainda que educadas, sensatas e equilibradas mantiveram serenas e resignadas mesmo durante o choro compungido e reservado.
Perguntaram: “doutor, quanto tempo nosso pai ainda tem de vida?”
“A ciência médica demonstra que uma vez dado o diagnóstico, o paciente terá uma sobrevida de cinco anos aproximadamente, sendo que quaisquer das condições já mencionada poderão ocorrer nesse interregno ou internações se tornarem frequentes por arritmias, pneumonias ou infecção urinária. Com a baixa de resistência tudo pode ocorrer, inclusive o óbito”, disse o médico.
E prossegui: “senhoras, não estou assustando vocês, estou? Estamos diante de uma situação muito delicada e eu preciso lhes expor tudo para que as senhoras não sejam tomadas de surpresa, mas acima de tudo que vocês e eu possamos lhe dar o melhor para que ele tenha melhores dias que lhe resta. Às vezes, o médico fica numa situação difícil, um beco sem saída, pois se ele é franco, pode ser mal interpretado como “frio” e de estar “desenganando” o paciente e se não fala nada ou pouco fala, pode ser visto como desinteressado, insensível e estar “enganando” a todos. Durma-se com um barulho desses”.
As senhoras se recompuseram. Despediram-se.
O retorno do paciente acompanhado de vários familiares ocorreu sete dias depois da primeira consulta. Apenas as duas senhoras e ele entraram no consultório. Nossa! Que diferença! O senhor estava visivelmente melhor: olhos brilhantes, corado, hidratado, feliz e verborrágico. Completamente diferente daquele homem outrora sem vida. Verdadeiramente, um milagre.
A primeira coisa que perguntou era se poderia voltar para a sua propriedade no interior, onde lá como caboclo se sentia à vontade e bem melhor com seu gado leiteiro e de corte, sua criação de porcos, frangos e suas plantações de mamão, banana, cupuaçu. As filhas gelaram.
O médico franziu a testa e coçou a cabeça. Disse-lhe: “seu Raimundo, não posso lhe proibir de fazer o que gosta, mas vou lhe pedir para que o senhor reduza cinquenta por cento o seu tempo e capacidade de trabalho. Por exemplo: se o senhor trabalhava doze horas, a partir de agora trabalhará só seis com dois períodos de três horas com intervalo para o descanso. E o trabalho pesado, o senhor passará para o capataz ou se ajudante. Com a experiência que o senhor tem, dará somente ordens para fazer isso e aquilo”.
O velho pareceu ter ficado contente, pois havida sentido que esteve próximo da morte e então, o que lhe deixasse fazer era lucro.
Contudo, as filhas estavam apreensivas. Como cuidar do velho, ele distante lá no interior? E se o velho passasse mal? Mas o médico buscou tranquiliza-las dizendo que o seu pai agora estava clinicamente “compensado”, pois havia respondido muito bem à medicação.
O próprio médico já tinha vivido esse drama na própria pele. O seu pai era cardíaco e seu paciente, um homem teimoso; morreu trabalhando durante a navegação no Rio Amazonas. Foi o que lhes disse; ninguém consegue segurar alguém que sinta-se bem.
E sorrindo arrematou: “senhoras, curtam o velho pai de vocês até os últimos dias, não fazendo da vida dele um inferno de proibições e limitações sem fundamentos”.
Após quatro longos anos, eis que um dia médico recebe o telefonema de uma das filhas dizendo: “doutor, bem que o senhor nos avisou; meu pai teve um derrame e está gravemente enfermo no CTI. O médico já o desenganou”.
Alguns dias depois do comunicado da família, o homem veio a falecer conforme previsto.
O médico foi até a capela funerária onde o corpo estava sendo velado e lá ficou durante um par de horas, pois aquele homem com sua história de vida o havia chamado a atenção pelo amor familiar.
O choro e condolências eram emocionantes, porém contidos. Houve cantorias entoadas e acompanhadas pelos mais antigos. O sacerdote celebrou missa de corpo presente.
Aproximava-se a hora do traslado do féretro até o cemitério. Tudo transcorria normalmente até que a filha mais velha, representando a família pediu a palavra e a atenção de todos ali presentes. O velho homem, caboclo amazônida, da pele curtida de sol, forte como um touro, deixara muitos amigos, companheiros e familiares, realmente.
O médico só percebeu que as honrosas palavras estavam sendo dirigidas a ele quando ouviu um zum zum zum da multidão e os muitos olhares de curiosidade e admiração voltados para ele. Quis ele sumir dali e ser apenas mais um na multidão.
Por um instante, sentiu-se envergonhado e não merecedor de tal honraria.
Contudo, a medida que a filha falava, foi tocado por profunda emoção, seu corpo estremeceu e, subitamente, sua garganta secara e perdera a voz. Lágrimas reservadas escorreram de seus olhos.
A filha relembrou verbalmente a todos os presentes cada palavra palavra dita pelo médico a respeito da situação clínica de seu pai, mas o que mais as impressionou e as deixou tranquilas foi a maneira respeitosa com que o médico tratou de um assunto tão difícil para a família.
O médico parecia não ouvir mais nada. O seu corpo levitava e olhando distante para os céus como que não estivesse acreditando no que ocorria, ao mesmo tempo em que agradecia a Deus por ser médico. Olhava para a filha oradora e de sua boca, como em câmara lenta, saiam palavras como “amizade”, “competência”, “sinceridade”, “honestidade”, “sensibilidade e delicadeza” diante do sofrimento alheio, exaltando o caráter humano daquele médico. As palavras parece que bailavam diante de seus olhos e eram um bálsamo para a sua própria vida.
Ao final, quando o médico drenado diante de tanta emoção, já se preparava para lhe agradecer pessoalmente, a senhora encerrou seu discurso diante de seu velho pai que jazia inerte com o facies surpreendentemente sereno, familiares e amigos, pedindo a todos os ali presentes SALVAS DE PALMAS para aquele médico.
E assim, respeitosamente escutou:
“UMA SALVA DE PALMAS PARA O DOUTOR”
“VIVA! VIVA! VIVA!” retrucou a multidão. E isso se repetiu por três vezes mais, tendo ao fundo aplausos efusivos de todos.
Os quatro homens mais fortes, filhos e netos carregaram o féretro até o carro fúnebre.
O médico despediu-se dos familiares, desculpando-se por não poder ir ao enterro por ter compromissos médicos, algo que compreenderam todos. Mais uma vez, agradeceram-lhe por tudo.
A caminho do trabalho pensou naquela situação, desde o primeiro momento em que atendeu o velho homem até a sua morte e por fim, compreendeu que fizera tudo ao seu alcance para dar-lhe uma vida clínica digna. “O que ocorreu agora há pouco foi um sonho”, disse para si mesmo. Deslumbrado, ligou para mulher e filhos. Todos os telefones fora de área. Não se desapontou. Talvez, ninguém acreditasse mesmo!
Os olhos ainda marejavam, a respiração era rápida e superficial, seu peito esquentava quando a sua mulher, também, médica, ligou perguntando porque saíra mais cedo do consultório. Disse-lhe: ” meu amor, estou no trânsito. Tu não vais acreditar na graça divina que recebi. Ocorreu algo que mexeu profundamente comigo e sem dúvida, me fará um ser humano melhor. Foi maravilhoso.
olha, a gente conversa em casa, ‘tá bom? Beijos”.
Assim, a caminho do consultório, repentinamente, mais uma vez, seu pensamento foi sequestrado por aquele espetacular cenário por ele vivido e que, sem que se desse por conta, como num passe de mágica, o transportou para o seu trabalho e lá chegando, visivelmente, percebia-se a sua transbordante alegria e satisfação como as de um ser humano plenamente realizado, como poucas vezes, dessa forma, havia ele sentido na vida.
Paulo Rebelo, o médico poeta.