ALÉM DA COR DA MESTIÇAGEM*

ALÉM DA COR DA MESTIÇAGEM
Por Paulo Rebelo

Eu jamais tive problemas com minha cor morena. Sou um mestiço; uma temperada mistura entre o branco anglo-saxão, o negro e o indígena amazônico.
Sou egresso de uma família, vinda dos confins da Amazônia, cujos antepassados eram os nordestinos, os WALLACES e os CAMPBELLS, mas não me pergunteis nada, pois se perderam no tempo. Deles pouco ou nada sei. Às vezes, sou tomado por um sentimento atávico, como se eu não fosse daqui, tivesse vindo num navio negreiro ou de imigrantes, escravo, aventureiro ou degredado, mas a impressão logo se desfaz, deixando para trás o rastro de uma pálida sombra
de meu longíquo passado.
Todos chamavam-me “preto”. Morávamos num vila de casas conjugadas de classe média baixa, no meio de um quarteirão, imprensada entre duas belas mansões de comerciantes árabes libaneses em cada esquina. Essa era a visão, que eu tinha de riqueza tão próxima e tão distante. Havia um belo jardim, onde lá em pensamento eu me aprazia e corria livre como num sonho.
Meu pai era piloto de rio e minha mãe, dona de casa. Acostumei-me com suas longas ausências.

A maioria dos costumes era burguesa e de religiosidade católica cristã, e eram salientados, quando se queria atribuir fineza, requinte e classe a qualquer evento social, mesmo humilde, pois era uma maneira de dar brilho e valor à uma vida simples e de dificuldades,
porém a vida era enriquecida pela cultura indígena e negra na alimentação farta em peixes,
frutas variadas, da floresta e hortaliças, adquiridas no mercado do VER-O-PESO em Belém do Pará, nos encontros familiares e de vizinhos, e os rituais de umbanda.
Sim, isso mesmo, UMBANDA; a vila inteira de casas conjugadas frequentava o concorrido Terreiro de Umbanda de minha saudosa tia avó JUCA, uma linda mulher boleada e cafuza. A vila e o bairro todo, aqui acolá se valiam da experiência e ajuda espiritual da Mãe de Santo, dona Juca, pobres e ricos, estes, com muita discrição, claro, pois sempre houve velado preconceito contra as religiões de matriz africana.
Ainda lembro-me das estatuetas de São Jorge e Iemanjá, a deusa do mar, mãe de todos os deuses africanos, os orixás, oferendas, babalorixás, das cantorias, das rodas das baianas com seus trajes brancos e rendados, e largas saias
rodadas,
dos toques dos tambores, dos atabaques, da água de cheiro aspergida pelo terreiro, do aroma inebriante da fumaça do charuto, que emanava de sua boca grande e carnuda,
o cheiro forte da cachaça e cerveja, e agradável odor das colônias de ervas e flores, espraiada nos corpos suados dos dançantes, dos óleos medicinais, e ainda daquelas palavras ininteligíveis, ditas num língua qualquer, quando nos aflitos e necessitados, tia Juca, aparentando incorporada de um ORIXÁ forte, purificava seus corpos e almas, dando-lhes “PASSES”. Eu mesmo tomei inúmeros, mesmo sem saber exatamente o por quê. Aquele aroma ficava entranhado na minha pele, roupa, cabelo e até no hálito e, profundamente, nas minhas memórias. Nunca fiquei assustado, até mesmo quando alguém caia no meio salão, estrebuchando-se, tendo pego um “santo”, depois outro e mais outro. A sessão varava a noite. No fim, tia Juca e os demais presentes estavam exaustos. Eu não, só um pouco enfadonhado e chateado, pois preso ali na longa cerimônia, não havia brincado o bastante com as outras crianças da rua. Como moleque, achava aquilo tudo muito natural e engraçado, mas ficava só para mim. As lembranças que ficam conosco e que não morrem jamais.
Assim, não sou mestiço apenas na cor da pele, mas num gostosa miscigenação de todas raças na alma.

Paulo Rebelo, o médico poeta.

P.S. As lembranças que ficam conosco e não morrem jamais. Ao acaso, bastou eu rever essas fotografias para que desaguasse sobre mim uma cascata de pensamentos e de sentimentos fortes outrora adormecidos há mais de cinquenta anos. MEU DEUS! Como as boas experiências da tenra idade são importantes na formação do ser humano!

A Umbanda é uma religião brasileira, que sintetiza vários elementos das religiões africanas e cristãs, porém sem ser definida por eles. Surgiu no início do século XX no sudeste a partir da síntese com movimentos religiosos como o Candomblé, o Catolicismo e o Espiritismo.

4 Responses

  1. Deusa Macedo disse:

    Sempre foi fã dos seus poemas e da pessoa que você é, médico, amigo para todas as horas, só tenho gratidão por ser amiga de uma pessoa tão especial, que Deus lhe abençoe sempre .

  2. SÔNIA LIMA disse:

    _ PAULO… QUERIDO!!! _ QUERIDÍSSIMO PAULO!!! ADMIRÁVEL ESCRITOR PARAENSE e “AMAPAENSE” … Que texto ES- PE-TA – CU- LAR !!! Obrigada por me fazer mergulhar num MUNDO de PENSAMENTOS e IMAGINAÇÕES; COMPARAÇÕES de vivências religiosas… De me fazer imergir em minha infância; de marcos de
    recordações especiais do passado. De minhas vicissitudes… _ Ah… SAUDOSISMOS ETERNOS!! Momentos e registros de memória preciosa ou, não. Todavia, sempre a infinita SAUDADE, do que passou, do que se viveu, e de que não se retroaje mais… Guarda-se no âmago, o valoroso tesouro dos momentos, daquilo que vivenciamos, apreciamos, compartilhamos… ou não… OBRIGADA! Vc é um MARAVILHOSO e ABENÇOADO ESCRITOR _ÍMPAR!! Com uma capacidade de nos fazer “ENTRAR E VIAJAR dentro e através de seus TEXTOS”, inebriando-nos de nossas recordações, tão particulares, mas com semelhanças de sabores e dissabores… Obrigada, querido AMIGO, de longo tempo.

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