A VISITA MÉDICA*
A VISITA MÉDICA
Anoitecia e eu para me assegurar que meus pacientes estavam bem, passava a visita no fim de tarde antes de ir para casa.
Porém, passando diante de um quarto ouvi um forte murmúrio abafado e gritos que pareciam reprimendas.
Pensei numa urgência e subitamente abri a porta. Qual foi a minha surpresa? Num quarto abafado e escuro, vi uma cena dantesca; no leito um homem na casa dos 60 anos, acamado, consciente, porém afásico, vítima de um AVC. Em pé, ao seu lado uma mulher abatida e mal arrumada, cabelo desgrenhado que lhe forçava a boca como uma colher de sopa que lhe escorria pelas laterais derramando na sua camisa de pijama já imunda e de odor fétido.
À minha pronta reprovação, ela tomou um susto e parou por um momento. Perguntei: “por que a senhora está fazendo isso? Se a senhora está cansada, chame outra pessoa da família para ajudar”.
Visivelmente nervosa e contrariada, relatou a seguinte história olhando nos olhos daquele pobre homem: “doutor, eu não mereço isso! Depois de velha, tenho que cuidar desse homem que foi um péssimo marido e, sobretudo, pai ausente e desamoroso. Nenhum filho quer ficar com ele. E aí eu tenho que suportar isso”.
Soluçando baixinho disse: “fulano, cadê aquelas tuas quengas para cuidar de ti agora? Por que não estão aqui agora? Sim, aquelas p… com as quais tu me traias. O que eu fiz para merecer isso, meu Deus?! Isso é um castigo, eu ter que cuidar dessa peste”.
O velho homem engoliu seco, sem poder de mexer, exceto os olhos e se contorceu no leito como não suportando a dura realidade para qual havia contribuído; estava tetraplégico e mal podia engolir, mas estava plenamente consciente e lúcido de sua triste condição médica.
Uma lágrima escorreu de seus olhos. Seus olhos estavam marejando. Gemia.
“Estás chorando por quê? Estás satisfeito agora? É fulano, a verdade dói! Isso é para pagar o que tu me fizeste”. Disse a mulher e arrematou: “aqui se faz, aqui se paga!”
Eu estava sem jeito, mas não perdi a linha: aquela era uma típica briga de marido e mulher, porém numa péssima hora para lavar a roupa suja, em que a minha vó dizia para não se meter a colher. Mas casais se machucam. Assim, não me restou outra opção a não ser tentar acalmar a situação exercendo o papel de “psicólogo”. Em seguida recorri à enfermagem para assumir o controle da situação antes que o pior ocorresse.
A caminho de casa fui pensando naquela situação sem julgar ninguém e que poderia ser comum a qualquer ser humano.
Um caso clínico que verdadeiramente não está escrito nos livros de medicina.
Paulo Rebelo. O médico poeta.