A SOLUÇÃO FINAL*

A SOLUÇÃO FINAL
Crônica de Paulo Rebelo

Não conheço nenhum colega médico que não tenha tido insucesso terapêutico pelo uma vez na vida profissional. Não estou falando do clássico erro médico descrito na DEONTOLOGIA MÉDICA, que trata da moral médica quanto aos casos de imperícia, negligência e imprudência no campo de sua atividade.
Nunca fui acusado formalmente disso, mas minha consciência, sim; em alguns casos, eu poderia ter feito mais ou tentado de outra forma.

Atendi uma mulher de meia idade, representante comercial, com sobrepeso, hipertensa, diabética, fumante, viúva e com quatro filhos por criar; todos ainda dependentes. Era uma pessoa auto didata, ansiosa, tensa, autocrata que parecia estar sempre atrasada e de difícil convencimento; aquele tipo de paciente que não luta contra a doença, mas, inconscientemente, contra o próprio médico, parecendo que este é seu inimigo. Claramente, ela tinha sinais de depressão, mas negava terminantemente ou não sabia. Achava que era apenas uma “tristezazinha” que melhorava quando tomava umas cervejas ao lado de amigas de ocasião.

Um dia, no consultório, descreveu em si um quadro clínico clássico de ANGINA PECTORIS, fruto de doença arterial coronariana ou popularmente, chamada de “veia entupida”. Todas as vezes que andava um quarteirão ou subia um ou dois lances de escada, arrochava-lhe e queimava o centro do peito fortemente, seguido de suor frio que molhava sua blusa.

O diagnóstico foi confirmado através de cateterismo cardíaco e depois de deliberarmos numa junta médica, era caso cirúrgico: duas pontes de safena e uma mamária. Ela recusou, inicialmente. Bem, eu disse-lhe que “não iria colocar uma corda em seu pescoço”. Em todo caso, recebeu a receita para tratamento clínico rigoroso e que reconsiderasse sua decisão.

Voluntariosa, disse que iria escutar uma segunda opinião, mas que, doravante, iria “mudar 180°”. A edperada mudança não demorou três meses. Impossibilitada de cumprir o básico ou seja, a mudança de estilo de vida, volta ao meu consultório, porém sem mudar a pose de quem tem a direção.

Decidida, atabalhoadamente, partiu para a cirurgia, a “solução final”, segundo ela dizia. Nesse ínterim, a depressão havia se agravado de sobremaneira a tal ponto de querer abandonar até a vontade de viver. O caso passara a ser psiquiátrico. Sugeri iniciar tratamento imediatamente. Recusou, dizendo que “não era doida”. Retruquei: “procure um antes que as pessoas que gostam da senhora fiquem!”. Era um beco sem saída; algo como se correr-o-bicho-pega-se-ficar-o-bicho-come.

Eu já havia perdido completamente o controle sobre essa senhora que, em verdade, nunca tive; jamais confiou em mim ou melhor, nem em ninguém, de fato. Em nenhum momento, invocou o nome de Deus para lhe ajudar nessa grande batalha.

A sua insistência em debater o óbvio, me fez lhe dizer que ela lutava com as armas erradas, arrematando que “um bom soldado só vai à guerra se estiver bem preparado” e que, “infelizmente, ela não estava preparada”. A sua depressão, agora, era o seu pior inimigo, pois solapava a sua energia física, mental e espiritual e que iria comprometer, de sobremaneira, a sua recuperação no difícil pós-operatório da cirurgia do coração. Ela, como de costume, fez ouvido de mercador. Finalmente, foi buscar uma segunda opinião. De uma certa forma, suspirei aliviado. Talvez, outro médico tivesse mais sucesso na condução de seu caso.

A impressão que tenho é que omitiu para o outro colega que ela estava com forte depressão. E, assim, com a imunidade baixa, ela foi para o ato operatório sem que eu nada soubesse. Não que eu houvesse lavado as mãos com ela que nem Poncius Pilatos, mas a sua teimosia havia revelado em mim uma enorme dificuldade em dialogar com aquela mulher e emtão, resolvi virar a página.

Passadas três ou mais semanas, lá eu encontro nos corredores do hospital, o casal de filhos mais velhos daquela cliente. Estavam “divididos”. Acreditavam que jamais a mãe devesse ter ido para cirurgia do coração. Estavam aflitos; a mãe não estava nada bem, pois já deveria estar no quarto, que ela não queria mais se alimentar, não aceitava a fisioterapia e “não tinha forças mais para nada”. Não queria viver, falando muito em morte. Às vezes, confusa.
Deram-me o recado dela: que, por favor, eu fosse visitá-la no CTI, pois “ela gostava muito de mim”. Não duvidei; o amor é estranho mesmo.

Ao vê-la muito debilitada, com uma febre que não cedia, desidratada no leito do CTI e com intracathes, drogas vasoativas através de bombas de infusão, antibióticos de última geração, dreno torácico, monitores de pulso, pressão, oximetria sonda urinária e etc, toda aquela parafernália, antevi o pior: a sua verdadeira “solução final” chegara. Ela já deveria estar no apto há duas semanas, mas havia contraído uma infecção hospitalar.

Afetuosamente, afaguei sua cabeça. Ela suspirou profundamente. Despertou. Ao me reconhecer, lagrimas caíram de seus olhos e sem forças nem para enxugá-las e chorar, soluçou baixinho. Doia-lhe o corpo todo. Queria falar tudo com os próprios olhos que não mais brilhavam, mas se engasgava e tossia. Eu parecia entender seu pensamento e sentimentos. Eu nada dizia. Apenas pensava: “meu Deus, quanta dor. Onde errei?”

“O senhor me perdoa, doutor?” Desolada, rogou-me com muita dificuldade, pude entender e sentir consternado pelo seu enorme sofrimento físico, mental e espiritual, como já havia previsto.
“Claro que sim, aliás fique tranquila quanto a isso; não há o que perdoar”, disse-lhe, apertando sua mão fria e quase inerte com num adeus.

Alguns dias depois a sua família me informou de seu falecimento. Creio que, entre outras coisas, o seu estado de espírito deprimido foi decisivo para o seu óbito.

À sua estranha maneira, a paciente me fez mais maduro não apenas como médico e ser humano.

O tipo de aprendizado que não está nos tratados médicos.

Paulo Rebelo, o médico poeta.

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