A SEPARAÇÃO*
A SEPARAÇÃO
Crônica de Paulo Rebelo
Uma das coisas que mais me intriga é a existência das doenças. A doença parece exercer um papel pedagógico na vida do indivíduo, que pode “renascer” a partir dela, por vezes, por outro lado, trágico na vida de alguns homens. Além disso, cataliza o fortalecimento de laços familiares e de amizade ou as destroi de vez, seguramente, por não serem tão sólidos assim.
Ao longo de minha vida profissional já vivi muitas experiências através de vidas alheias. Vi a doença fazer reatar amizades, casais e relações familiares, mas, também, testemunhei alguns infortúnios, felizmente, poucos, verdadeiras exceções, cujo um dos casos passarei a relatar agora.
Atendi uma mulher na casa dos quarenta e cinco anos. Estava desacompanhada. Sentia há seis meses palpitações, cansaço, falta de ar e chiado no peito. Às vezes, tosse com hemoptóicos*. A hipótese diagnóstica mais forte era de doença no coração, o que foi confirmada com os exames subsequentes.
Infelizmente, ela já havia perdido o melhor momento para a cirurgia de cura definitiva do problema. Como consequência, permanentemente, corria o risco de uma série de complicações cardiovasculares, inclusive, morte súbita e o AVC.
Eu me sentia incomodado pelo fato de vir sempre sozinha e, quando indagada sobre sua família, era reticente. Para agravar a situação, religiosa, mas ingênua, dizia que Deus iria curá-la, negando-se a tomar os medicamentos conforme prescrito.
A princípio pensei em desistir dela. O que fazer nessa situação? A mulher sumiu e depois de algum tempo, não havendo espaço p empatia entre nós, eu a esqueci por completo.
Alguns meses depois, eu trabalhando, a secretária anuncia que, na recepção, havia familiares de uma paciente internada que diziam ser minha e insistiam em falar comigo com urgência. Um detalhe: eu não tinha nenhuma cliente no hospital naquela semana.
Após as apresentações formais. Vim a saber que se tratava daquela mesma estranha mulher, então, mãe dessas pessoas, cujo seu prognóstico desde sempre era ruim.
A família, deselegantemente, me cobrava explicações para a má evolução da mãe (ela tinha tido AVC), buscando de alguma forma, ligar-me à gravidade de sua condição clínica atual
Ainda que tentasse acalmá-la, sem sucesso, logo percebi um claro mecanismo de defesa por transferência de responsabilidades; o propósito dos familiares era encontrar um culpado pelo infortúnio da mãe, um bode expiatório. Eu parecia ser a pessoa mais próxima.
Ainda que desconfortável, mantive a fleuma e “virei o jogo”, quando lhes fiz algumas poucas perguntas em relação às consultas, exames e medicamentos prescritos por mim para a sua mãe, que não souberam responder , deixando claro à família que, quem estava devendo cuidados àquela senhora, era a própria família.
“Ora, nenhum de vocês nunca esteve presente nas suas consultas, então, como vocês podem cobrar algo?” e ainda perguntei-lhes: “cadê o seu esposo? Enfim, cadê o pai de vocês?” Estranhamente, não responderam.
Sem nada mais para dizer, se retiraram.
A explicação para o comportamento evasivo da mulher, seu completo auto abandono e a agressividade dos filhos ocorreu dois dias depois; o marido resolveu visitar a esposa no hospital que já estava “desenganada”, em coma profundo.
Em meio aquele cenário dantesco, lamentavelmente, pai e filhos se encontraram naquele apartamento para “lavar a roupa suja”.
O marido havia arranjado uma outra mulher há poucos anos, bem mais jovem que ele e isso trouxe um profundo desgosto para a toda a família e, principalmente, para a esposa, muito religiosa, mas ele nunca tinha tido a disposição ou coragem de abandonar a casa.
Então, naquele instante, como se não estivesse alí, presenciei uma discussão acalorada entre eles, pai e filhos, como se estivessem dentro da própria casa, em que as piores palavras filhos possam dizer para um pai, até que, por fim, cabisbaixo, mas sem apresentar sinais de remorso, fora expulso do apartamento do hospital.
Assim, perplexo, testemunhei o fim de uma família; se o casal já estava separado, com a doença, a separação ocorrera para sempre**.
Paulo Rebelo, o médico poeta.
- Escarro com sangue
** A mulher morreu pouco tempo depois, sem nunca ter se recuperado do AVC, em meio a muito sofrimento de todos.