A SUBSTITUTA*

🖋🖋🖋

A SUBSTITUTA

Por Paulo Rebelo

Atendi uma mulher na casa dos sessenta e cinco anos.
Tinha uma aparência fragilizada.
Guardava ainda traços de rara beleza cabocla.
Falava pouco sobre si.
Estava pálida,
pele seca e sem vida.
Dava muita ênfase ao que sentia,
motivo de sua ida ao meu consultório.
Queixava-se de muitos sintomas desconexos.
De verdadeiro mesmo,
a artrose,
a pressão alta,
a gastrite,
a insônia e a ansiedade.

Relatava uma dor no peito que lhe incomodava há muitos meses. Às vezes, de repente, perdia a visão, a rosto parecia paralisar, a cabeça pesava e girava e o que era um cenário de terror para ela: o braço esquerdo estava pesado, fraco e dormente.

O seu diagnóstico, segundo ela mesma: “derrame” e “coração”.

A tomografia do crânio e radiografia do peito, bem como os exames de laboratórios eram normais.

Assim, havia uma grande discrepância entre o que ela sentia o que existia, de fato. A meu ver, a exuberância de sintomas físicos era devido a fatores emocionais.

A minha hipótese diagnóstica dividida com ela e a filha acompanhante, igualmente, apreensiva era:

ansiedade com manifestações pseudo-neurológicas e depressão, além das já citadas.

Deixei claro para ela que seus problemas eram de origem psicossomática ou seja, emocional, todavia que não eram coisas criadas da sua cabeça e sim, oriundos de sua dura história de vida. Começou a trabalhar cêdo na infância e durante toda a adolescência e depois, viveu como empregada na casa de terceiros.

Senti que ela não acreditou em absolutamente nafa do que eu lhe dissera tal era a presença dos sintomas que para ela eram coisa grave.

Passei-lhe medicamentos para pressao alta, para depressão, tranquilizante e para dores.

Ao retornar ao consultório, o seu rosto abatido denuncia o fracasso de meu tratamento.

Aí eu respirei fundo e liguei para a minha secretária dizendo-lhe que aquela consulta-retorno iria demorar mais uma hora aproximadamente.

Eu já conhecia muito de sua vida pessoal: menina da ilha no interior do Pará, de uma família paupérrima de muitos filhos, o pai agricultor, mãe doméstica e pescadora, morava numa palafita às margem do rio, afastada da vila.

Abri a tela do computador e digitei no GOOGLE: “SOMATIZAÇÃO”. O trabalho era de uma grande instituição médicas que listava dezenas e dezenas de problemas doenças resultantes de transtornos emocionais.

À medida que a filha ia lendo comigo (a paciente era analfabeta), percebia-se o interesse crescente da paciente em comparar o que escutava ao que ela apresentava.

Curiosamente, ao término da leitura, seu rosto se iluminou.
Passou a sorrir

Mas, faltava algo; por que essa riqueza de sintomas em contraste com uma pobreza de sinais?

Perguntei-lhe: dona Maria, há algo que a senhora julgue importante me dizer? O que a senhora lembra da sua infância? Qual a primeira coisa que lhe vem a cabeça?

Os seus olhos arregalaram,
baixou a vista, entristeceu, os olhos marejaram, caiu uma lágrima e emudeceu mais uma vez.

A filha disse: “fale, mamãe, por favor”.

“Eu tinha doze anos e ao acordar pela manhã chamei pela minha mãe: mãe, mãe! Ao longe meu pai gritou: ela foi embora! Não entendi nada. Minha mãezinha se foi? Não sei nem o que senti depois; parece que tinha tomado um choque. Fiquei parece um fantasma ronda do rpela casa. Queria chorar, mas uma voz me dizia que ela ia voltar. Nunca voltou.

Depois daquela manhã, passei a fazer o trabalho pesado de minha mãe na casa e cuidar dos meus cinco irmãos menores. Isso durante muito tempo.

A partir desse dia passei a ser a mulher de meu pai, também. O senhor entende, doutor?!”

Não é a toa que aquela mulher tivesse tanta dor no corpo e na alma.

Eu engoli seco e me deu um nó na garganta. Não sabia o que dizer.

Escutara incrédulo o abuso sexual infantil daquela pobre mulher, enquanto piedosamente, assistia
mãe e filha abraçarem-se e chorar copiosamente,
lavando suas almas.

Após abrir seu coração,
milagrosamente, a sua terrível dor no peito passou.

Abraçou-me com as forças que lhe restavam, enquanto soluçando dizia: “muito obrigado, doutor!
Agora sei que vou ficar curada”.

Paulo Rebelo, o escrevente do tempo.

6 Responses

  1. Roni Rabelo disse:

    Profundo, simplesmente maravilhoso!

Leave a Reply

Deixe o seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *