A RAZÃO DE MINHA POÉTICA*
🖋A RAZÃO DE MINHA ESCRITA LITERÁRIA
Por Paulo Rebelo
(o porquê preciso escrever)
Às vezes, acordo insone no meio da noite como agora, às 3 horas da manhã e há muitos anos já acostumado, passo a escrever sobre acontecimentos cotidianos e pregressos, geralmente, doces reminiscências como a que passo a relatar a seguir. É o momento mais adequado que tenho para escrever, pois a casa está em silêncio e todos dormem profundamente.
Comecei a escrever quando ainda era um jovem estudante de medicina. Passando visita hospitalar com os professores, ficava muito impressionado com o sofrimento dos doentes internados, sobretudo psicológico. Então, tocado emocionalmente por isso, aleatoriamente, como mecanismo de defesa, comecei a escrever fragmentos de textos literários. O que direi é a seguir é profundo e difícil de explicar, mas tentarei, pois eu superei. Estranhamente, foi por medo do futuro; algo como “eu posso ser ele amanhã”. Era difícil para alguém dentro de um lento processo de amadurecimento enfrentar precocemente tamanha dor alheia. Assim, eu escrevia porque eu sofria. Ao voltar para casa, às vezes, ficava arrazado psicologicamente durante dias, denotando uma sensibilidade exagerada e preocupante, pois assisti alguns jovens colegas desistir da medicina. Não queria ser o próximo.
À época, nem se cogitava tratamento psicológico, porquanto “a medicina não é para os fracos”, diziam os professores. “Vá se acostumando, acadêmico, porque daqui em diante só vai piorar, só vai melhorar quando aprenderes a arte da medicina”, arrematavam. Não tendo para onde correr, a saída que encontrei foi a escrita.
Foi uma necessidade vital não prevista escrever. Explico melhor: ao testemunhar inúmeros pacientes ficarem angustiados, alguns em estado de choque e outros ainda com profunda depressão após saberem pelo médico o fatidico diagnóstico, por exemplo, de sua incapacidade física ou mental com invalidez permanente, da incurabilidade de sua doença ou da inexorabilidade da morte, ditas sem rodeios pelo médico, eu ficava horas e horas pensando: “e se fosse comigo isso, será que eu gostaria de saber o diagnóstico ou ainda como eu gostaria de receber uma notícia assim? Haveria uma maneira de ao falar o diagnóstico, de tal sorte que o médico não piorasse ainda mais o estado psicológico do paciente, agravando ainda mais sua condição física? O médico, sem desejar, acabava provocando a IATROGENIA. Mesmo agindo dentro do rigor cientifico, do ponto de vista humanístico, por ser um tanto quanto insensivel, ao lado do bem que buscava praticar, acabava provocando o mal, piorando de sobremaneira a condição do doente, abreviando sua spbrevida. Por exemplo: “o senhor foi operado, mas vi que seu câncer está disseminado. O senhor tem 6 meses de vida”. Uma das coisas que em mim provocou profundo impacto foi o suicidio de um homem inteligente e culto nessa condição. Curiosamente, era ateu.
Foi desse jeito que nos bastidores bem ou mal, fui aprendendo a ser médico, infelizmente.
Assim, a escrita foi a única saída que encontrei para me defender; tornou-se uma catarse, uma válvula de escape, uma rota de fuga ou um poderoso antídoto; “o meu RIVOTRIL” para que eu não absorvesse tanto sofrimento, e era isso eficaz até o caso subsequente. Eu precisava escrever, haja vista que no dia a dia não tinha com quem conversar sobre algo tão difícil e intenso.
As minhas anotações eram quase que totalmente “existencialistas”. Na época, eu anotava minhas dúvidas em pequenas notas avulsas ou mesmo nas páginas dos livros médicos como lembretes. Com o tempo foram se acumulando. Não sabia muito bem o que fazer com elas, mas nos congressos médicos quando eu encontrava um professor mais velho, sabidamente experiente, eu lhe perguntava: “professor, como o senhor falava para o paciente, que o caso dele era incurável ou que ele iria morrer por isso?” “Bem, isso não está escrito nos tratados médicos nem se aprende em sala de aula”, respondia. “Só a prática do dia a dia”.
Assim, com a ajuda professores mais antigos, e sobretudo, de anônimos pacientes, sem que me ensinassem diretamente, aos poucos e, silenciosamente, fui construindo uma narrativa própria, posta em textos.
Ao longo de anos fui aprendendo a ter cuidado com as palavras e jeito de falar com o paciente e familiares sobre o seu diagnóstico, principalmente, se grave, pois se o médico fala abertamente, ele o está “desenganando” e se pouco ou nada diz, ele está escondendo algo ou o enganando, durma-se com um barulho desse! Solitariamente, eu tinha que encontrar um meio termo. A verdade acima de tudo, mas com empatia. A pergunta que passou a nortear minha vida médica desde então foi: “e se fosse comigo?”
“À medida que trato o enfermo eu me curo”.
Na final da década de 90, com o advento do WORD, com a ajuda de minhas secretárias, pouco a pouco, fui montando o quebra cabeça das minhas anotações, dando forma e sentido a minha escrita, fruto de pensamentos e sobretudo, sentimentos, outrora confusos, que mesmo aparentemente complexos foram tornando-se sóbrios e equilibrados, mas profundamente ricos, traduzidos nas folhas de papel. Passei a perscrutar as entrelinhas do drama humano.
À medida que o tempo passava os textos foram sendo classificados em três segmentos: “as dores da alma”, de cunho existencialista, “as dores do corpo”, que tratam dos casos clínicos (alguns de tão marcantes mudaram-me como ser humano, passando eu a ter outra visão de mundo), e por fim, “as dores do mundo”, cuja temática é atual.
A arte literária me fez crescer culturalmente e intelectualmente. Aprendi novas palavras e formas de textos como contos, crônicas e etc. Estudei prendizado semântica. Todavia, escrita literária me fez crescer como médico e mais ainda, como ser humano, pois através de meus poemas e poesias a clientela passou a conhecer o homem Paulo Rebelo muito além da figura do médico, o que contribuiu muito para a melhoria da minha relação médico-paciente, por conseguinte, para obtenção de sucesso terapêutico, que é finalidade do médico. Não foi nada fácil; foi um longo e solitário caminho, mas ao final, engrandecedor.
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Paulo Rebelo, o médico escritor.
P.S. Apenas hoje, depois de amadurecido, despretenciosamente, pude escrever esse texto com mais clareza e leveza, graças à poética.
Tela THE DOCTOR, de Luke Fildes (1891).