A MISÉRIA HUMANA*
A MISÉRIA HUMANA
Texto por Paulo Rebelo
Ao longo de sua formação, a sociedade brasileira foi se adaptando à miséria das ruas e parte dela, a mais afluente afeita a preceitos cristãos, por inúmeras razões, desde verdadeiramente humanitárias, passando por eminentemente sociais e até como ganho político, nunca enfrentou-a de frente.
Um dos aspectos desse paternalismo mórbido, muitas vezes, cultural, é a adoção oficiosa e indesejada ou inoportuna de crianças por terceiros, premidas pelas circunstâncias de abandono e maus tratos. Acaba não havendo amor nessa união e sim, um arranjo ou mera convenção social.
Assim, muitas acabam indo para uma casa, mas não necessariamente um lar e seguramente, isso se reflete na sua formação humana. Muitas crianças são criadas como é possível, outras são criadas como inquilinas.
Atendendo há muitos, um dia soube de um caso assim: uma criança, filha da união de uma empregada doméstica com o dono da casa, típico de uma sociedade escravocrata, rejeitada pela esposa, que acabou sendo criada pelo próprio irmão do homem. A criança passou a viver “encostada” noutra família.
Ainda que educada com todo conforto, mal tolerada por metade da família, vítima de intolerância e discriminação social desde cedo, cresceu, mas não amadureceu adequadamente. Era uma enjeitada. Era uma mancha na grande família pequeno burguês e cristã impossível apagar.
Aos catorze anos teve um filho. Não aguentando a pressão, pois segundo aquela família, “era uma ordinária igual a mãe”, rejeitada mais uma vez, a contra gosto, voltou para casa da mãe biológica, uma palafita em cima da ressaca. Para sobreviver, tornou-se babá sem nenhuma experiência ou aptidão para tal.
A sua própria criança faleceu aos quatro aninhos de modo trágico, reflexo da miséria humana.
Contou-me a avó sem nenhum pingo de emoção: ” O menino estava dormindo e aí fui fazer minhas coisas. Eu estava na cozinha. Depois de algum tempo, vi aquele silêncio que ela não estava no quarto. Não estava no barraco; estava afogada de bruços no lago no lado de casa, debaixo da ponte.
Paulo Rebelo, o escrevente do tempo.