A MACUMBEIRA EVANGÉLICA*
Crônica de Paulo Rebelo
O texto é uma reminiscência, e o título burlesco me ocorreu de escrevê-lo ao resgatar mais uma de minhas doces memórias da minha infância.
Ainda que nascido e criado no seio de uma família de classe média baixa, com suas naturais dificuldades, minha vida infantil e na puberdade foi relativamente feliz, pontuada de muitas histórias pitorescas, que guardo carinhosamente na lembrança, como a que contarei a seguir, ocorrida há mais de trinta anos.
Minha família por parte de pai, natural de Santarém-PA, era praticante da UMBANDA. Era “macumbeira”, diziam as más linguas. Exagero, claro! Fora o que uma vizinha de Bernadete, minha esposa, falou à ela em tom de fofoca e mau agouro, quando mal havíamos começado a namorar, disse-me ela anos depois em tom de gracejo, já quando éramos casados. “Olha onde eu fui me meter”, dizia rindo! Na verdade, não é bem assim; quem era Mãe de Santo de seu terreiro, praticante da Umbanda era minha saudosa tia avó Juca, que Deus a tenha. Doce criatura, estimada por toda a família, de quem guardo belas recordações.
Perdeu-se no tempo o dia em que assisti um culto de UMBANDA pela primeira vez, e lá em seu terreiro durante minha segunda infância, ah!…como tomei muitos “passes”, para que fosse livrado do “mau olhado” e de todos os males.
O objeto de minhas recordações como veremos é a Florentina ou, simplesmente, Flora, a minha segunda tia avó, falecida aos 99 anos, que já na velhice tornara-se crente, depois de anos e anos adepta da umbanda, motivo de piada entre os familiares.Tia Flora, como eu, carinhosamente, a chamava, era uma espécie de “ajudante de culto” do terreiro de tia Juca, sua irmã mais velha. Nas celebrações, trajava a vestimenta branca. Ela era quem preparava o local para as cerimônias espirituais, acendia as velas e queimava incensos, e a água de cheiro a ser borrifada no ambiente de umbanda e, também, sobre os corpos dos presentes, dando-lhe uma atmosfera de misticismo e espiritualidade. Também, usava em si colônias de ervas de cheiro e medicinais amazônicas, feitas por ela, portanto estava sempre com um agradável doce cheiro de mata, que recendia o ambiente.
A vida inteira sempre fora solteira, mas nunca solitária, pois foi aquela pessoa muito estimada pela família, sendo muito presente na criação dos sobrinhos. Era uma cabocla cafuza de hábitos simples, mas de porte altivo e bem educada. Não dependia economicamente de nínguem; era quituteira de mão cheia. Além de ser merendeira do Instituto musical Carlos Gomes, vendia seus doces e salgados para uma clientela fixa. Cansei de beliscar seus quitutes furtivamente. Nunca entendi porque era solteirona, pois era bela, talvez, pelo fato de ser pessoa amável, mas circunspecta, exigente e seletiva.
Anos depois, já adulto, reencontro tia Flora, já idosa e aposentada, de quem nunca havia perdido completamente notícias. Ela havia se tornardo evangélica praticante, algo que durante anos foi alvo de mangaria por parte de meus tios, seus sobrinhos, que pegavam no seu pé, perguntando-lhe sorrindo a todo instante, em todo festivo encontro familiar de um aniversário ou almoço do fim de semana o seguinte: “égua, Flora, que história é essa de deixar de ser “macumbeira” e se tornar crente?” Tia Flora “pegava corda” resmungando, mas nunca respondia; era um grande mistério.
Uma dia soube que minha tia avó JUCA, sua irmã, e família havia migrado para o Rio de Janeiro no fim da década de 70. Na falta de perspectivas, alguns milhares de paraenses migraram para o Rio de Janeiro, antes a capital do Brasil. Houve até uma linda canção que eternizou essa onda migratória: “peguei o ITA do NORTE e fui pro Rio morar, adeus meu pai, minha mãe, adeus Belém do Pará 🎼. Ai, ai, ai, ai, adeus Belém do Pará…” 🎼.
Anos mais tarde, já idosa, lá no Rio, “aposentada” da Mãe de Santo, ela faleceu em decorrência de um AVC hemorrágico, depois de muito sofrer, coitada. Era hipertensa e não sabia. Antes do falecimento, eu já médico, do Rio, me ligaram para me informar do ocorrido e tirar suas muitas dúvidas. Era muito grave e de prognóstico sombrio. Morreu pouco depois ainda no CTI.
Aquelas coisas tristes, inexoravelmente, foram acontecendo e muitos de meus queridos familiares foram nos deixando deste plano, inclusive, aqueles meus jocosos tios, que descansem em paz, sobrando apenas a tia Flora, vivendo com uma sobrinha neta, muito serena em sua idade provecta, e com seus cabelos alvos e ralos. Sempre atenciosa e cheirosa. Já não trabalhava mais, não porque não desejasse, mas pelas mãos tomadas pela artrose.
Aquela curiosidade de meus tios, um dia, havia passado para mim, mas ainda jovem, por respeito, nunca ousei lhe perguntar sobre sua “transformação espiritual”.
Acontece que com a idade muitas coisas já não têm tanta importância. Eu havia sido o primeiro neto homem da família entre cinco primas, e chamado carinhosamente de “pretinho”, fui o seu xodó, também. Tinhamos intimidade, que nunca acabou com a distância e o tempo. Havia tempos que ela estava reflexiva, lucidamente, falando muito de seu passado, que parece que lá eu havia vivido; as praias de areia alva das águas verdes do Rio Tapajós, suas ruas e praças, onde passara sua inocente infância, e a constelação de pessoas muito queridas por ela há épocas falecidas, o que lhe conferia um ar de melancolia em meio a resignação.
Assim, um dia, calmamente, lhe perguntei: “tia Flora, como é que a senhora se tornou evangélica?” Seus olhos arregalaram-se, não pela minha ousadia, mas como se algo lhe tivesse vindo repentinamente na memória. Parou por um momento, refletindo, disse-me: “ah, Robertinho, não gosto nem de me lembrar…Olhei-a com condescendência. Engoliu seco e meio contrariada, disse: “roberto, fiquei muito envergonhada, quando a Juca estava em coma no CTI. Era bem tratada por todos, medicos e enfermeiras, mas amarrada no leito, muitas vezes, ela acordava desorientada, muito agitada e chamava muitos palavrões “cabeludos”, coisa horrível. “Mas, o quê tia?”, perguntei. “Ah, Roberto, ela parecia ver e falar com a Pomba Gira e o Caboclo Tranca Ruas…alucinada, gritava “sai p’rá lá, seus diabos!”, e que esses espíritos estavam ali para lhe levar embora. Roberto, eu ficava tão envergonhada e chateada, pois por mais que eu rezasse, só piorava. Prosseguiu: “até que crentes, que lhes foi permitido entrar no CTI para orar por outro crente, um paciente grave, internado do lado da Juca, que até recebeu alta, me pediram se poderiam orar por ela. Claro, eu permiti, né, Roberto? Todos os dias no horário de visitas, a Juca recebia orações dos crentes, e não é que ela foi se acalmando, até um dia o médico muito bondoso me dizer com calma, que a sua passagem estava próxima! Nesse dia, entristecida, eu me resignei. E assim, a Juca morreu em paz. Os crentes me convidaram para frequentar sua igreja ainda lá Rio, e como gostei, aqui em Belém continuei a ir aos cultos. Criei um abuso daquela obsessão pela umbanda e larguei tudo”.
A partir daí, todas as vezes que ia em Belém buscava vê-la. Eu a recebia no restaurante do hotel com um lauto almoço para ela e os poucos familiares que restavam. Era um momento muito agradável. Ela enxergava, escutava, mas falava pouco e muito baixinho e debilmente. Já era nonagenária se aproximando do centenário. O coração trabalhava normalmente. Eu estava feliz por ela. Era bem cuidada.
Um dia, acidentou-se em casa e quebrou o fêmur. Ficou debilitada. Os médicos anteviram o pior. Como era uma mulher lúcida, corajosamente decidiram operá-la, mas era como colocar parafuso numa folha de papel. A minha prima disse, resignada, que ela morreu como um passarinho, com um semblante de profunda paz. Fiz o sinal da cruz.
Eu lembrei de tia Flora, quando era jovem e cheia de vida. Nessa hora, me recordei de uma bela cantoria no culto de umbanda, que escutava naqueleterreirode umbanda; como um mantra entoado a plenos pulmões por todos, convocava os fiéis alí presentes a seguir em frente, mesmo diante das vicissitudes da vida.
Era mais ou menos assim:🎵”coragem, meus marinheiros, coragem p’rá navegar, ela se chama Mariana, ela é a Rainha do Mar” 🎵.
Paulo Rebelo, o médico poeta 💐💐💐
Glossário:
✔Mãe Mariana é IEMANJÁ, a Rainha do Mar. Iemanjá é uma orixá muito popular que está presente nas religiões de matriz africana no Brasil. É considerada aqui a orixá dos mares, sendo também a protetora dos pescadores. Fez parte da religiosidade dos iorubás, sendo associada com os rios nesse culto africano. Foi trazida para o Brasil por escravizados africanos. Iemanjá, mãe de grande parte dos orixás, foi sincretizada com várias santas, como Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes, ambas celebradas em 2 de fevereiro, e Virgem Maria, a mãe de Jesus.
✔O candomblé invoca entidades espirituais africanas.
✔A Umbanda é fruto do sincretismo religioso entre as religiões de matriz africana, catolicismo e espiritismo, levando a uma aceitação maior por parte da sociedade brasileira.
✔A entidade Pomba Gira é considerada um Exu feminino e a mensageira entre o mundo dos orixás.
✔O senhor Tranca Ruas é considerado o capitão das encruzilhadas, o grande guardião dos caminhos, defensor das mulheres e dos oprimidos, sendo o responsável por comandar uma falange de exus.
P.S. A maioria das entidades espirituais africanas é do bem, mas como todos os deuses na terra, é “instável”.
✔Há muita licença poética no texto.