A LINGUAGEM UNIVERSAL*
A LINGUAGEM UNIVERSAL
Texto por Paulo Rebelo
A última consulta do turno da manhã anunciada já próximo das 14 horas era de alguém para avaliação pré-operatória para fins de risco cirúrgico, nesse caso, colelitíase, conhecida como pedra na vesícula, algo rotineiro.
O médico já apresentava algum sinal de cansaço e tinha fome e isso se manifestava na forma de certa impaciência e irritabilidade. Todavia, com algum esforço, isso seria fácil de resolver.
Para sua surpresa, quatro mulheres entre vinte e cinco e cinquenta anos, todas da mesma família, mãe e filhas, adentraram no consultório de uma só vez. Atrás delas, sem que percebessem, agitando os braços para lhe chamar a atenção e a seguir, lhe tranquilizar, com o indicador em riste silenciando a boca, sua secretária implorava para que ele não dissesse absolutamente nada, pois sabia que ele não tolerava romaria de dois ou mais acompanhantes na consulta. Mas, enfim, três familiares numa consulta, pensou, devia ter algum motivo importante. Então, aquiesceu.
A consulta já começara estranha, pois todas as respostas à anamnese, ou seja, questionários médicos eram dados pelas filhas ora em uníssono ora em rodízio. A paciente mesmo apenas sorria. Era algo inusitado.
Depois de muito tolerar, intrigado (e já francamente impaciente), sem dar nenhuma chance para as filhas falarem, com uma ironia perguntou diretamente para a paciente: “Ué, por que é que senhora não diz nada? A senhora, por acaso, não tem língua?”
Surpresas pela atitude mais do médico, as filhas arregalaram os olhos, mas se apressaram em se desculpar: “desculpe-nos por não ter dito nada; é que nossa mãezinha é SURDA, doutor!”. E então, como que para proteger a mãe que notara algo diferente, as filhas em volta dela abraçaram-na todas.
O médico assustou-se verdadeiramente e ainda mais deslocado pelo fora dado; quis pedir perdão, mas parecia tarde demais. Ainda assim se desculpou.
“Meu Deus! Elas, se desculparem de quê?”, pensou: “quão deselegante fui eu!”. Desnecessário dizer o quanto embaraçado ficou e se houvesse um buraco ali mesmo e naquela hora, de vergonha, ele teria se enterrado vivo. Contudo, logo se recompôs, não perdendo a fleuma, agora mais humano. Precisava continuar com a consulta.
Tudo transcorria bem, porém, uma pergunta não lhe saía da cabeça: “como essa senhora surda pôde educar tão bem suas três filhas e acima disso haver tanto amor, respeito e carinho entre elas”?
Assim, essa simples pergunta ficou lhe cercando até o final do atendimento.
Concluída a consulta, curioso, enfim, perguntou-lhes: “moças, como vocês se comunicam com ela? Através de LIBRAS, a língua de sinais?”.
Responderam: “não, tudo é através de gestos nossos mesmos, que fomos criando”.
-“E como ela educava e instruía vocês sobre tarefas e deveres?”
Responderam: “tudo era feito através de seus exemplos, ensinamentos e demonstrações práticas diárias, seu comportamento”.
-“E quando vocês faziam alguma traquinagem?”
-“Aí, doutor, bastava ela olhar feio para nós que a gente se comportava melhor”.
O médico estava admirado com aquela mulher que jamais lhe dirigiu uma só palavra seque. Por um breve instante, seu pensamento voou em busca de exemplos seus, mas não os encontrou nem para correlaciona-los; nada comparável ao daquela mulher. Sentiu-se pequeno e entristecido.
Ainda sem acreditar no que via, quis saber como se portavam já adultas diante dos inevitáveis entreveros familiares.
Ao que lhe responderam: “quando entendemos a limitação da mamãe, fizemos um pacto para não lhe levarmos problemas. Já chega o seu sofrimento pessoal. Aprendemos com ela através de seus bons exemplos quando jamais gritou conosco, nunca nos bateu ou beliscou nem sequer nunca nos ameaçou de nos castigar. Preparava nossa merenda, nos levava para escola, nos levava para passear, fazia o nosso bolo de aniversário. E ela não se mete na briga dos casais. E todos entendem isso e procuram resolver cada um, seus problemas”.
Beijando o rosto de sua mãe, a filha mais velha disse:
“doutor, é a LINGUAGEM DO AMOR!”
Ao escutar atentamente, cabeça do médico rodopiou. Essa última frase caiu-lhe como um raio! Pensou em si mesmo e em própria família, o quão tenha sido autoritário como pai, pois por conta do trabalho, muitas vezes, foi negligenciada por ele, pelas suas negativas, pela sua indiferença ao drama da esposa como mãe, pelas agressões verbais lhe imposta por alguém que deveria dar o bom exemplo. Estava maravilhado e confuso com aquela situação diante de si, pois naquelas suas palavras exemplares não havia demagogia nem proselitismo baratos de quem demonstrasse querer angariar simpatia do médico e sim, uma profunda e rara honestidade familiar.
Despediram-se.
Aquela experiência o marcou profundamente o médico. Não parava de pensar sobre “a simples mulher surda que não falava nada, mas que dizia tudo e ele, médico, instruído, que falava muito e não dizia nada”.
Agora parecia estar exausto, drenado pela emoção. Sentou-se na sua cadeira e visivelmente emocionado, começou a lagrimar ao pensar no filho com o qual se desentendia com frequência. Ato contínuo, voluntarioso, pegou o celular e ligou para ele. Não saberia por onde começar. Tinha que fazê-lo. O filho iria estranhar a ligação, pois não se ligavam. Telefone fora de área. Sentiu certo alivio. Sempre fora desajeitado com os filhos. Deixou o seguinte recado verbal: “meu filho, eu sempre fui um pai ausente. Perdão, mas não foi proposital. Foi somente por ignorância e necessidade; eu saia cedo para trabalhar e vocês ainda estavam dormindo e quando eu voltava tarde da noite, vocês já estavam dormindo. Quando vocês estavam acordados e brincando, era eu quem estava cansado e dormindo. Um verdadeiro desencontro de minha parte. Então, do fundo de meu coração, perdoe-me”.
Eu te amo,
Teu pai.
P.S. Mais tarde, ao abrir sua a caixa de mensagem, o filho dizia: “pai, hoje adulto, eu te entendo. Sei que o senhor não é perfeito. Não há o que perdoar. Eu sou quem lhe peço perdão.”
O médico, então, aliviado, chorou copiosamente.
Paulo Rebelo