A IATROGENIA MÉDICA*

A IATROGENIA MÉDICA
Por Paulo Rebelo

Assisti uma cena hospitalar que mudou minha vida. Eu era um jovem médico cheio de entusiasmo e com isso, já angariava alguma simpatia de pacientes.

Um desses pacientes era um homem na casa dos 50 anos, barba sempre por fazer, branco, cabelos ralos e brancos, objetivo e por vezes, confrontador e irônico. Era gozador. Chegava a ser irritante, mas era um bom homem. Era inteligente, mas igualmente impaciente. Sempre tinha a última palavra, algo que médicos detestam. É que havia quinze dias que estava internado e segundo ele, ninguém dizia o que ele tinha. Apresentava febre que nunca passava, caroços no pescoço e axilas, perda de peso e suores noturnos “de encharcar a cama”.

Bem, ele estava com câncer do sistema linfático em fase bem avançada. Naquela época não havia a ressonância nuclear magnética, a imunofenotipagem, o PET SCAN nem o arsenal terapêutico de hoje. É o que os médicos chamam de medicina fora de possibilidade terapêutica. Passa a ocorrer a medicina de beneficência onde impera a compaixão.

O próprio médico assistente e a equipe de enfermagem se esquivavam dele, por certo, sem saber como abordar a questão, haja vista que ele era um homem aparentemente sem família ou rejeitado por ela. Assim, sobrava para mim o papel de escutá-lo, mas também, nada eu lhe dizia, mesmo porque de sua doença pouco conhecia.

Um dia enquanto conversávamos amenidades, ele se sentindo enganado, de seu leito interrompe a caminhada de um médico que deveria nunca ter sido chamado. Era um cirurgião geral, um homem altivo, conhecido rudeza; era profissional objetivo, franco e pragmático, parecendo sempre muito ocupado e atrasado, pouco adepto à conversa de perder tempo.

Fragilizado, sem buscar transparecer, perguntou-lhe o paciente : “doutor, o que que eu tenho? Esse pessoal fica me escondendo as coisas. Pode me dizer, doutor! Sou um homem vivido e estou tranquilo, preparado para tudo”.

O médico deu um sorriso, folheou o seu prontuário, franziu a testa e disse-lhe secamente que nem o próprio paciente esperava: “o senhor está com câncer generalizado e muito pouco a medicina tem para lhe oferecer”

Assustou-se e, surpreendentemente, disse apenas “obrigado”.

Abateu um silêncio sepulcral na enfermaria. Todos foram tomados de espanto e consternação. E agora? Todos se perguntavam revoltados.

A partir daí, com o passar dos dias, o paciente isolou-se em si mesmo, rejeitando qualquer tipo de ajuda, inclusive, alimentar-se e beber água e dentro de três semanas estava morto, tendo imposto um sofrimento muito grande a si e a equipe de saúde que adoecia junto com ele.

Andei revoltado durante muito tempo. Questionei a medicina. Certamente, ele não tinha que morrer assim.

A lição que levei para minha vida profissional? Que jamais iria tornar a ver uma cena dantesca como aquela. Jamais iria fornecer uma informação para alguém enfermo, sem que eu estivesse absolutamente seguro de que não pioraria mais ainda sua condição; a temível iatrogenia médica.

Paulo Rebelo. o médico poeta.

NOTA: um estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico.

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