A FOGUEIRA SANTA*
A FOGUEIRA SANTA
(Ou o senhor viu, sim!)
Por Paulo Rebelo
🖋O meu celular vibrava insistentemente durante o meu atendimento médico. Era a minha irmã. Pensei: “deve ser algo urgente”. Pedi desculpas ao cliente. Tive que atender.
“Eu estou consultando, minha irmã, o que foi?” “Liga a tevê e assiste o que essa doida está dizendo!”, disse ela esbaforida. “Ah, essa não, não posso; estou muito ocupado com um paciente na minha frente”, disse meio constrangido e aborrecido, tentando disfarçar. Então, sem respeitar o que eu havia acabado de dizer, passou a descrever a cena que relatarei adiante. Ela estava indignada, mas naquele instante, na minha cabeça era bobagem. “Vou gravar”, disse ela.
Ao longo de minha vida profissional aprendi a respeitar o credo alheio, mesmo eu jamais tendo sido religioso, mas um sensível espiritualista.
Uma vez atendi uma senhora na casa dos 45 anos. Era uma neófita beata neopentecostal, dessas que recentemente haviam descoberto Jesus (amém!). Todos os males do ser humano eram frutos de pecados, dizia como ladainha.
Sentindo-se à vontade e íntima minha, sei lá, inconveniente, passou a “analisar minha alma” e me convidar para frequentar a sua igreja evangélica. Parece que quem estava se consultando era eu. Declinei o convite. Nunca desistiu. Eu sorria amarelo. Até que um dia para me livrar de sua insistência, da boca para fora disse, disse que sim, eu iria.
A pedido, à noite, assisti o vídeo doméstico do culto gravado, enviado por minha irmã. Fui tomado de surpresa e incredulidade. Aquela minha paciente do passado havia feito parte de um programa tele evangélico nacional e dava o seu testemunho de cura ao pastor em São Paulo. “Qual era o seu problema, irmã ?”, perguntou ele. Com sotaque típico amapaense, disse: “era açúcar no sangue e pressão muito alta. Também, tinha dor no coro, na pente, no cruzo e sentia a mãe do corpo batendo muito forte. Eu estava morrendo”, finalizou. Eufórico e teatral, o pastor vangloriava a sua congregação religiosa, porque depois de ter frequentado a sua igreja, após “sessões de descarrego”, “fogueiras santas”, “lenços sagrados” e “caminhos santos”, atirado todos os seus medicamentos na lata de lixo, a fiel, conforme seu testemunho em rede nacional, estava curada. Pronto, havia sido salva mais uma alma!
Tomei um choque quando ela, respondendo ao pastor, maravilhada e num ato falho, falou quem havia sido o seu médico em Macapá: EU!*
A imagem daquela mulher, aquela cena não me saiu da cabeça durante tempos. Que filha da mãe! A minha irmã, me tentando, dizia: “tu não vais fazer nada?” Ué, fazer o quê agora?
O fato é que me esqueci dela e meio que a perdoei, comentando apenas com minha mulher, que disse para eu rezar e agradecer a Deus, não pela sua cura, mas “por ter me livrado daquele encosto”. “Credo, minha mulher!”, gargalhei.
Agora, tu não vais acreditar; parece coisa do diabo! Um belo dia, alguns anos depois, a paciente retorna ao meu consultório sorumbática e abatida fisicamente. Não ostentava mais a pose de moralidade que me afrontava com condescendência como se eu fosse um pecador incurável. Tive emoções contraditórias ao mesmo tempo que de raiva e compaixão dela, mas sou um homem que não guarda rancor, acredite. Respirei fundo. Eu a perdoei.
Ao examiná-la, constatei que as doenças crônico-degenerativas haviam atingido a mulher em cheio. Para piorar, estava separada do marido. Disse ela que havia abandonado os remédios (e aquela igreja, também) que voltara a tomar recentemente, mas não sabia porque não estavam mais fazendo efeito. Estava arrependida. Frequentava a igreja católica agora.
Disse eu brincando: “ó mulher de pouca fé!” Ela arregalou os olhos assustada e desconfiada, perguntou-me: “O senhor viu o programa, doutor? O senhor falou que nem o pastor! Fingi que nada sabia.
Até o fim da consulta, sorria para mim mesmo, agora “com um sabor de vingancinha”.
Assegurei-lhe que iria ficar boa. Ela não parava de me encarar curiosa; “ah, o senhor viu o programa, sim!”
*P.S. Em nenhum momento a paciente me desmereceu profissionalmente; apenas era uma pessoa fragilizada emocionalmente em busca de cura.
Paulo Rebelo, o médico poeta.