A CARTA*
A CARTA
Ainda lembro bem da época quando escrever e receber uma carta para alguém querido era bom, ainda mais quando vinha acompanhada de um postal e fotos. Como as distâncias e viagens eram longas e difíceis, o telefone era um item de luxo, ruim e caro, nada melhor do que cartas para ou visitas para matar a saudade.
Escrevia-se muito, pois havia muito o que contar. De um modo geral, toda carta começava algo assim: “Macapá, 15 de janeiro de 1960. Querida Ana Clara, como estás? Como estão todos? Espero que estejas bem na santa paz de DEUS. Sentimos muito a tua falta. A tua breve visita nos encheu de alegria, E nós nos esforçamos para que tu te sentisses em casa. Ninguém esquece de tuas piadas, de tua educação e altruísmo, de tua elegância discreta e das comidas gostosas que volta e meia fazias e adorávamos isso. A nossa casa estará sempre de portas abertas para te receber.
Nós estamos bem agora. Mamãe esteve muito doente com pneumonia, Ficou internada durante quase um mês e a família teve que se revezar no hospital. Felizmente, ela está melhor, recuperando-se lentamente com xaropes, frutas, caldo de galinha e sopas de carne e legumes. Agora ela se encontra na casa de meu irmão RICARDO onde está sendo muito bem tratada. No próximo mês será a minha vez de ficar com ela.
Minha querida, confesso que fiquei um pouco nervoso, pois vi a pessoa que mais amo no mundo a ponto de morrer. Graças ao médico, o Dr. Antonio a equipe do hospital, ela ficou completamente curada…”
Naqueles dias, a vida parecia rodar em câmara lenta, As pessoas pareciam conversar e escutar os problemas alheios, mais dispostas a ler cartas, revistas e jornais. Poucos afortunados tinham carro e telefone em casa, pois eram caros. Daí a importância das calorosas visitas e cartas. Visita era realmente um acontecimento histórico. Minha mãe e eu limpávamos a casa na véspera. Eu limpava o único banheiro da casa, passava cera e escovava o chão com escovão, pois a enceradeira veio anos depois, Minha mãe preparava quitutes ou comprava alguns doces e biscoitos portugueses finos na antiga “Casa Palmeira”, que já não existe mais. No banheiro, punha toalhas de rosto rendadas e perfumadas. O sabonete era da PHEBO ou da LUX, usado por “nove entre dez estrelas”.
A visita há muito tempo esperada vinha invariavelmente bem asseada e trajada. Cheirava de longe. A formalidade logo se encerrava à medida que conversam, embalados por repetidas xícaras de café feito na hora, chás e suco de laranja fresco ou refresco de limão espremidos pouco antes. Enfim, a visita era a festa! Quando queriam trocar confidências, minha mãe me olhava de soslaio e me mandava fazer algo que não tinha nada a ver.
Duas visitas me marcaram muito na infância: a primeira delas foi de um primo de minha mãe chamado Vivaldo Campbell. Eu devia ter uns 7 anos de idade. Lembro bem dele: um homem na casa dos 30, belo, de porte altivo e elegante, de terno bege, linguagem clara e inteligente, formal pelo elevado grau de instrução e inteligência, pois era funcionário público federal, professor e mestre em agronomia. Fiquei tão impressionado que disse a mim mesmo: “Um dia vou ser tão importante quanto esse homem”.
A segunda visita foi de meu tio William Campbell, irmão mais novo de minha mãe, bem mais jovem que seu primo. Meu interesse pela língua inglesa ocorreu através dele, Era um homem culto, mas tinha um vício: FUMO. Fumava dentro de casa a despeito do pedido de minha mãe para que não fumasse ali “para não dar mau exemplo”, Foi o mesmo que nada; distraído ou à vontade, ele deixou a carteira de cigarros sobre a mesa e eu esperto, filei dois cigarros para levar a novidade para meus amiguinhos. Encostados num muro que não nos escondia de nada, lembro de estarmos brincando com os cigarros, momento de pura farrinha e emoção por fazermos algo que me era proibido, quando, de repente, fui tomado de surpresa com um “tapão” da minha mãe na minha boca. Sob o grito de “Passa já para dentro, seu moleque abusado”, acabou meu momento de empolgação e que agradeço à minha mãe por não ter cultivado o hábito de fumar. Quando penso nisso, meu DEUS, estranhamente, parece que foi ontem; até hoje, sinto minha boca arder pelo providencial tapa que eu levei.
Paulo Rebelo, o médico poeta