A BONECA*

A BONECA

Crônica de Paulo Rebelo

Atendi uma senhora há trinta anos quando eu era um jovem médico. Durante anos a fio tratei dela de pressão alta e coração até recentemente quando beirava a casa dos cem anos. Um traço de sua personalidade me chamava atenção: a serenidade. Era uma mulher católica fervorosa.

Tenho por hábito surpreender amigos e pacientes. Aproveitei a oportunidade do telefonema da filha dessa idosa e resolvi visitá-la e levar um bolo para comemorar o momento.

Ela já havia se tornado cardíaca avançada e há algum tempo apresentava visão ruim e demência pela idade, algo q desconhecia.

Aquela tardinha de sexta-feira foi muito agradável, mas ao mesmo tempo saudosa. Percebi que a despeito da idade avançada estava bem, porém mentalmente, a idade de uma criança. Apenas repetia o que as filhas lhe diziam. “Mamãe, a senhora sabe quem é esse homem?” Perguntavam. “É seu doutor!” Apenas sorria. Não mais sabia nem quem eu era.

Às vezes, teimosa recusava medicação e alimentação. As filhas arranjaram uma saída engenhosa p contornar a situação; deram a ela uma boneca que chamava de minha filha. Era o que a acalmava. Ela, horas na cadeira de balanço com a boneca no colo.

A despedida marcou minha vida. Quando as filhas pediram para que ela cantasse os cânticos da igreja, surpreendentemente, passou a entoar as mais belas canções à capela e sem o coro de nenhum dos presentes.

Ao final, eu também cantava com ela agradecido por aquele inesquecível momento: “Oh, Virgem Mãe amorosa, fonte de amor e de Fé…”

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