ATESTADO MÉDICO POR ANTECIPAÇÃO*

ATESTADO DE ÓBITO POR ANTECIPAÇÃO.

Crônica de Paulo Rebelo

Ainda sou de uma época em que o médico estimava com certa convicção quanto tempo um indivíduo, diante de uma doença grave ou terminal, ainda tinha de vida.

Isso não era visto pela sociedade como mera adivinhação nem apenas um palpite; era algo baseado na experiência de vida clínica do médico e era respeitada a sua opinião e se ele errasse na previsão, a sobrevivência da pessoa era vista como um “milagre”.

Era muito comum um paciente ser “desenganado”.

O que um médico dizia era quase uma sentença de morte.

Ocorre que naquele tempo a medicina era antiquada e contava com tratamento à base de “ventosas”e sangrias que era a retirada de excesso de sangue ou ainda a prescrição de doces para quem estava com hepatite, acreditava-se que A. Isso era uma festa p crianças. Eu mesmo comi muita goiabada e marmelada!

Muitos exames tinham uma baixa sensibilidade e especificidade para diagnóstico de doenças que, frequentemente, eram confundidas ou seja, por limitações diagnósticas, errava-me muito. Não existia ainda os modernos exames de imagem nem endoscópicos.

Não havia o conceito de medicina baseada em evidências científicas e sim, em abstrações e especulações.

Mas, a vida era assim mesmo; lenta e às vezes, monótona. A longa espera para um diagnóstico e tratamento matava lentamente o indivíduo pelo cansaço e o deixava resignado com qualquer coisa que viesse pela frente.

Lembro-me de um paciente, alto e de olhos azuis-claros, só “pele e osso”, o seu Carlos Asdrúbal, caso ocorrido há mais de quarenta anos em que fora “desenganado” pelo seu médico, o doutor Moreira, clinico geral, muito bem conceituado na época, então, na provinciana cidade de Belém do Pará.

Agricultor, na casa dos 55 anos, ainda relativamente jovem, mas estava envelhecido; estava doente há um ano. Sua vida havia parado no tempo e sua família ficou no longo e penoso compasso de espera de uma morte anunciada.

Ao longo de doze meses emagracera muito, perdendo uns trinta e tantos kilos. Apresentava dor abdominal constante e diarréia protraida. Evoluia com apatia, anemia e fadiga.

Eu estava ao lado do médico como seu “estagiário”, quando a notícia foi dada aos familiares.

As palavras do medico eram objetivas, mas não eram “secas” nem frias; tinham muito sentimento em si; vinham acompanhadas de profundo pesar e compaixão.

O doutor Moreira era um homem afável e circunspecto. Aprendera muito com ele. Com poucos lugares para estagiar, eu tinha mais é que aprender o que podia e rápido e ainda “por osmose” ou seja, o que não estava escrito nos livros: a prática médica do dia-a-dia dos bastidores e corredores da Santa Casa Misericórdia do Pará. Eu era, no jargão estudantil, um rato de hospital. Eu não queria ser um “médico burro”.

Lembro-me muito bem quando ele chamou a família à parte e lhe disse: “é câncer dos intestinos! Ele tem pouco tempo de vida. Talvez, uns seis meses. Leve-o de volta para o interior”.

Chamou-me a atenção o espanto, a incredulidade e depois, o pranto contido de esposa e filhos, enxugando as lágrimas para que o seu Asdrúbal não percebesse nada.

Ao me despedir-me do médico não imaginei o que viria pela frente.

Após uma longa ausência, volto ao hospital e vou direto ao consultório do médico. Para minha surpresa, era outro médico atendendo.

“Cadê o doutor Moreira?” Perguntei à técnica de enfermagem que o atendia. “O senhor não soube?” Disse ela já com lágrimas no olhos; “ele morreu de câncer. Um dia, deu uma dor de cabeça tão grande. Era um tumor cerebral. Ainda tentaram uma cirurgia…

O tempo passou e quem morrera primeiro fora o próprio médico que deu ao seu paciente o fatídico diagnóstico. Que coisa!

Anos se passaram e eu, já médico, um dia, por razão que não me recordo mais volto àquele hospital.

Repentinamente, vem à minha memória o saudoso Dr. Moreira e seu paciente com câncer terminal. Sou tomado por nostalgia. É que ali eu fui feliz como estudante de medicina.

Passando pelo ambulatório, ouço ao longe: “psiu! Ei, “doutor Paulo?!”

Quando olho p trás, qual foi minha desconcertante surpresa? Ninguem iria acreditar. O seu Asdrúbal! Sim, ele mesmo; eu o reconheci pelos penetrantes olhos azuis.

“Mas, como? Só pode ser um milagre!”, pensei! Ele estava forte e corado. Estava cheio de vida.

“Como está o senhor? Está se tratando?

Antes que continuasse meio sem graça, ele disse:

“o senhor se lembra de mim? Já sei o que o senhor está pensando. Médico, não era câncer, não! Era outra doença que estava me acabando por dentro. Hoje, faço uma dieta rigorosa e só tomo uns remédios. Não posso mais comer um torresmiho, uma carne de porco…”

“Clarice (sua mulher), qual é o nome da minha doença mesmo?

(Nesse últimos dez anos, já havia ultrassonografia, colonoscopia e etc).

“Peraí, doutor Paulo, nem eu sei falar. Remexeu sua bolsa e retirou de lá um laudo todo amarfalhado da biópsia do intestino e o estendeu-me para ler;

Estava escrito assim;
RE-TO-CO-LI-TE UL-CE-RA-TI- VA*.

Assim, o diagnóstico equivocado o havia feito sofrer duas vezes durante anos a fio.

Paulo Rebelo, o médico poeta.

P.S. Doença inflamatória crônica do intestino grosso de causa desconhecida e incurável, caracterizada por cólicas, dor abdominal, diarreia e acentuada perda de peso nos casos mais graves e que pode evolui para câncer do cólon.

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