O VÍCIO*(mutilação)

O VÍCIO
(mutilação)
Crônica por Paulo Rebelo

Ainda que tente, nunca entendi perfeitamente o ser humano. Talvez, porque sejamos bilhões, mal conhecendo quem está próximo de nós com todas as suas peculiaridades, quiçá gente afastada ou desconhecida.

Agora como médico, tento entender o outro, até mesmo para o bem dele. De certo modo, se consegue, porque fragilizado, o paciente fala tudo. Bem, nem tudo. Às vezes, nada.

Atendi um homem estrangeiro na casa de uns 60 anos, diabético e fumante; três carteiras de cigarro por dia, segundo ele. Apresentou trombose venosa profunda na perna, quando há formação de um grande coágulo na panturrilha. Internou. Tratou e recebeu alta. Depois de um ano, superou o aquele problema imediato.

Com o tempo, complicou com úlcera do pé afetado pela trombose. Depois de muito sofrer, fez amputação do pé. Meses depois, da perna abaixo do joelho. O interessante, é que continuava fumante. Imagine que a fissura pelo cigarro era tamanha que ele chegava a se ausentar do hospital para fumar. Cheguei a encontrá-lo na esquina, mas atônito, eu nada disse como não se fosse o lugar nem momento. Senti -me “desmoralizado” como médico.

Além da personalidade curiosa, pois parecia não levar ninguém ou nada a sério, a conversa com ele era difícil. Era húngaro, cuja língua urálica é completamente diferente de tudo; seu inglês sofrível era da “beira do cais” e se resumia a frases curtas e diretas. De sua parte, não havia nem desejava sentimentos de amizade.

A despeito dos conselhos médicos, em nada mudava o seu comportamento. Ansioso e distante, continuava fumando. Nunca foi mal educado nem “seco”. Era afável, mas reservado.

A sua condição, tanto do ponto de vista médico como humana era uma prova de fogo para mim. Eu era jovem e não sabia lidar com tamanha desídia pessoal. Sentia-me desconfortável, para não dizer inseguro com a pressão indireta que ele exercia sobre o meu conhecimento médico e como ser humano. Queria ter compaixão pelo indivíduo, mas ao mesmo tempo o que se revelava, de minha parte, era constrangimento e desconforto por sua maneira indiferente à preocupação alheia com o seu próprio bem.

Jamais falou de sua vida pessoal e nem de terceiros. Nunca soube de sua visão de mundo ou de sua terra. Um indivíduo enigmático por natureza.

Assim, nessa toada, ao longo dos anos, ele foi tendo recaídas e recaídas, até amputar ambas as pernas à altura do tronco das coxas e ficar restrito à uma cadeira de rodas para sempre, mas assustadoramente, nunca parou de fumar, nem nos pós-operatórios.

E, então, eu perguntava: “como é possível um indivíduo, aparentemente consciente, provocar a sua própria mutilação?”

Um dia soube através de terceiros que ele havia morrido ou que tinha voltado para sua terra, sei lá. Na verdade, ninguém sabia ao certo. Pensei (ou não deveria ter pensado): “foi melhor desse jeito”.

Assim, até hoje, me questiono o porquê me importava com aquele homem a tal ponto dele me incomodar tanto.

Paulo Rebelo, o médico do corpo e de almas.

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