A LINGUAGEM UNIVERSAL*
A linguagem universal
A última consulta do turno da manhã, anunciada já próximo das 14 horas, era de alguém para avaliação pré-operatória para fins de risco cirúrgico. Nesse caso, colelitíase, conhecida como pedra na vesícula, algo rotineiro. O médico já apresentava algum sinal de cansaço e tinha fome, e isso se manifestava na forma de certa impaciência e irritabilidade. Todavia, com algum esforço, isso seria fácil de resolver.
Para sua surpresa, quatro mulheres entre 25 e 50 anos, todas da mesma família, mãe e filhas, adentraram no consultório de uma só vez. Atrás delas, sem que percebessem, agitando os braços para lhe chamar a atenção e a seguir, lhe tranquilizar, com o indicador em riste, silenciando a boca, sua secretária implorava para que ele não dissesse absolutamente nada, pois sabia que ele não tolerava romaria de dois ou mais acompanhantes na consulta. “Enfim, três familiares numa consulta”, pensou, “devia ter algum motivo importante”. Então, aquiesceu.
A consulta já começara estranha, pois todas as respostas à anamnese, ou seja, aos questionários médicos eram dadas pelas filhas ora em uníssono ora em rodízio. A paciente mesmo apenas sorria. Era algo inusitado.
Depois de muito tolerar, intrigado (e já francamente impaciente), sem dar nenhuma chance para as filhas falarem, com uma ironia perguntou diretamente para a paciente: “Ué, por que é que senhora não diz nada? A senhora, por acaso, não tem língua?”.
Surpresas pela atitude mais enfática do médico, as filhas arregalaram os olhos, mas se apressaram em se desculpar: “Desculpe-nos por não ter dito nada; é que nossa mãezinha é SURDA, doutor!”. Então, como que para proteger a mãe que notara algo diferente, as filhas em volta dela abraçaram-na todas. O médico assustou-se verdadeiramente e, ainda mais deslocado pelo fora dado, quis pedir perdão, mas parecia tarde demais. Ainda assim, se desculpou.
“Meu Deus! Elas se desculparem de quê?”, pensou, “Quão deselegante fui eu!”. Desnecessário dizer o quão embaraçado ficou e, se houvesse um buraco ali mesmo e naquela hora, de vergonha, ele teria se enterrado vivo. Contudo, logo se recompôs, não perdendo a fleuma, agora mais humano. Precisava continuar com a consulta.
Tudo transcorria bem, porém, uma pergunta não lhe saía da cabeça: “Como essa senhora surda pôde educar tão bem suas três filhas e, acima disso, haver tanto amor, respeito e carinho entre elas?”. Assim, essa simples pergunta ficou lhe cercando até o final do atendimento.
Concluída a consulta, curioso, enfim, perguntou-lhes: “Moças, como vocês se comunicam com ela? Por meio de libras, a língua de sinais?”. Responderam: “Não, tudo é com gestos nossos mesmos, que fomos criando”. “E como ela educava e instruía vocês sobre tarefas e deveres?”. Responderam: “Tudo era feito com seus exemplos, ensinamentos e demonstrações práticas diárias, seu comportamento”. “E quando vocês faziam alguma traquinagem?”. “Aí, doutor, bastava ela olhar feio para nós que a gente se comportava melhor”.
O médico estava admirado com aquela mulher que jamais lhe dirigiu uma só palavra sequer. Por um breve instante, seu pensamento voou em busca de exemplos seus, mas não os encontrou nem para correlacioná-los: nada comparável ao daquela mulher. Sentiu-se pequeno e entristecido.
Ainda sem acreditar no que via, quis saber como se portavam já adultas diante dos inevitáveis entreveros familiares. Ao que lhe responderam: “Quando entendemos a limitação da mamãe, fizemos um pacto para não lhe levarmos problemas. Já chega o seu sofrimento pessoal. Aprendemos com ela, por meio de seus bons exemplos, quando jamais gritou conosco, nunca nos bateu ou beliscou, nem sequer nunca nos ameaçou de nos castigar. Preparava nossa merenda, nos levava para escola, nos levava para passear, fazia o nosso bolo de aniversário. E ela não se mete na briga dos casais. Todos entendem isso e procuram resolver cada um os seus problemas”. Beijando o rosto de sua mãe, a filha mais velha disse: “Doutor, é a LINGUAGEM DO AMOR!”.
Ao escutar atentamente, a cabeça do médico rodopiou. Essa última frase lhe caiu como um raio! Pensou em si mesmo e na sua própria família, o quanto tinha sido autoritário como pai. Por conta do seu trabalho, muitas vezes, a família foi negligenciada por ele, com suas negativas, com sua indiferença ao drama da esposa como mãe, com as agressões verbais impostas por alguém que deveria dar o bom exemplo. Estava maravilhado e confuso com aquela situação diante de si, pois, naquelas suas palavras exemplares, não havia demagogia nem proselitismo baratos de quem demonstrasse querer angariar simpatia do médico e, sim, uma profunda e rara honestidade familiar.
Despediram-se. Aquela experiência marcou profundamente o médico. Não parava de pensar sobre a simples mulher surda que não falava nada, mas que dizia tudo, e ele, médico instruído, que falava muito e não dizia nada.
Agora, parecia estar exausto, drenado pela emoção. Sentou-se na sua cadeira e visivelmente emocionado, começou a lagrimar ao pensar no filho com o qual se desentendia com frequência. Ato contínuo, voluntarioso, pegou o celular e ligou para ele. Não saberia por onde começar. Tinha que fazê-lo. O filho estranharia a ligação, pois não se ligavam. Telefone fora de área. Sentiu certo alívio. Sempre fora desajeitado com os filhos.
Deixou o seguinte recado verbal: “Meu filho, sempre fui um pai ausente. Perdão, mas não foi proposital. Foi somente por ignorância e necessidade. Eu saía cedo para trabalhar e vocês ainda estavam dormindo e, quando eu voltava tarde da noite, vocês já estavam dormindo. Quando vocês estavam acordados e brincando, era eu quem estava cansado e dormindo. Um verdadeiro desencontro de minha parte. Então, do fundo de meu coração, perdoe-me. Eu te amo. Teu pai”.
P.S: Mais tarde, ao abrir sua caixa de mensagens, o filho dizia: “Pai, hoje adulto, eu o entendo. Sei que o senhor não é perfeito. Não há o que perdoar. Eu sou quem lhe peço perdão”.
O médico, então, aliviado, chorou copiosamente.
Paulo Rebelo