O MELHOR NATAL DO MUNDO*
Assim que eu vi aquela criança de poucos meses de vida me passou pela cabeça que ela poderia se tornar nossa filha. E, logo fui criando compaixão e amor por ela por estar internada no hospital, seriamente enferma com Marasmo-Kwashiorkor*, Rota Vírus e Pneumonia, podendo não sobreviver. No almoço, já receoso de receber um “não”, pisando em ovos, comentei com a minha esposa o meu desejo e para minha alegria, ela disse-me um rotundo “sim” de enorme satisfação.
Passamos a visitá-la como seus “pais” com regularidade, levando fraldas descartáveis e leite rico em nutrientes.
Um belo dia, assistentes sociais estavam no hospital para levar a criança diretamente ao abrigo, pois recebera alta. Era a lei. O estado assumira o caso. Temi por sua vida, imaginando que sem família, seria morte certa da criança pelas suas condições sociais e clínicas ainda adversas.
Prontamente, protestei e as impedi. Alegaram cumprir seus deveres. Ora, disse-lhes que o estado não cuidava nem de quem estava vivo, imagine naquela condição; a criança estava em fase de convalescença e inspirava assistência redobrada, algo que já vínhamos fazendo.
Diante da relutância de ambas, apelei! Aquelas senhoras eram clientes de minha esposa que era pediatra de seus filhos. Disse-lhes firmemente que diria à ela com todas as letras “quem eram elas”, “impiedosas” com aquela criança e “insensíveis” diante de meu apelo e que, por favor, não mais procurassem pela minha esposa em busca de assistência a seus filhos. Eu seria o primeiro a despacha-las. Assustaram-se. Voltaram atrás.
Rapidamente me colocaram em contato com o juiz de plantão. Ainda que estivesse já fora do período de adoção natalina, diante de nossa forte disposição em sermos seus pais, ele nos concedeu a guarda provisória da criança.
O período da “adoção natalina” foi criado pela justiça para conceder a casais a oportunidade de conhecer crianças para futura adoção ou não. Dependeria, entre outras coisas, da adaptação de ambos àquela nova situação.
Advertiram-me para entregar a criança à justiça no dia 1 de janeiro, algo que premeditadamente eu não o faria.
Aproveitamos o momento para fazer tudo que verdadeiros pais fariam por uma filha necessitando de amor incondicional. Ela ganhou peso, a pele sarou e passou a sorrir. Parou de chorar. Já dormia entre a gente. Dissemos: “ela é nossa filha!”.
“Doutor, onde está o senhor? O senhor já deveria ter nos entregue a criança!”, dizia a assistente pelo celular. Já era dia 2 de janeiro. Diante o juiz da Infância e das assistentes sociais que agora preocupadas com minha atitude, porém solícitas em nos ajudar a sermos os pais do neném, a eloquente defesa da minha esposa pela sua guarda definitiva em nosso favor foi fator decisivo para que ela se tornasse membro da família.
Assim ocorreu naquela extraordinária audiência. Éramos os pais de “papel passado e carimbado”.
Então, durante tempos eu me perguntei maravilhado como alguém pode se apaixonar por uma criança num piscar de olhos.
A resposta ocorreu ao acaso. Uma paciente minha já idosa e carente, no alto de sua sabedoria e singeleza respondeu-me: “ora doutor, se a gente é capaz de se apegar a um cachorro, por que a gente não vai se afeiçoar a uma criança que é coisa mais linda do mundo?!”.
É a mais pura verdade. Lá se vão 19 anos.
(assim adotamos a segunda filha)
Paulo Rebelo, o médico poeta.
* grave desnutrição