INSUCESSO TERAPÊUTICO*

INSUCESSO TERAPÊUTICO


(O Calcanhar de Aquiles do médico)

 

Aquele dia era mais um dia como outro qualquer. Logo na primeira consulta, atendi uma jovem mulher de uma beleza incomum na casa dos 25 anos, porém sem brilho.

Era extremamente formal, não permitia que a entrevista médica fluísse com naturalidade, evitando responder perguntas que considerava pessoais demais.

Para contornar essa dificuldade, solicitei que fizesse exames o mais breve possível para afastar completamente doença cardíaca, motivo de sua preocupação.

O exame físico e os sintomas apontavam para transtorno de ansiedade generalizada e do pânico com manifestações cardiovasculares. Aliás, a partir das primeiras impressões, eu já lhe antecipara que sua “doença” pudesse se tratar de natureza psicossomática pela abundância de queixas sistêmicas, algo que ela mesma fez pouco caso, haja vista que dissera que “não tinha problemas pessoais”.

No retorno, nenhuma não foi detectada nenhuma doença. Mas, , ela acreditava que estivesse “muito doente”. Então, perguntou-me: “e agora?”.

“O seu problema deve ser oriundo de um conflito emocional”, disse-lhe. Arregalou os olhos e insatisfeita com o diagnóstico, ríspida, disse: “eu não estou louca. Se estivesse procuraria o psiquiatra! “

Aquela consulta mesmo bem paga estava desgastante. Suei frio, respirei fundo e contei até dez. Engoli seco! Ousado, disse-lhe: “perdoe-me, não conheço ninguém que não tenha problemas; nem CRISTO!”

-Ponderei: “olhe, não deveria haver segredos entre a senhora e mim. É como o pecador ir ao confessionário e dizer ao padre que não tem pecados. Mas, não posso passar uma corda no seu pescoço; aqui não é Câmara de tortura!”

Baixou a cabeça.

Prossegui delicadamente, porém firme. “Agora dona Carla, por favor, gostaria mesmo de poder lhe ajudar. Veja-me como o seu confidente, alguém disposto a lhe ajudar, pois vejo que a senhora sofre, mas estou convicto de que seu enorme sofrimento físico é oriundo de um distúrbio emocional que a senhora se recusa consciente ou inconscientemente revelar, haja vista que a senhora não melhora com os meus medicamentos”.

-“A senhora é uma jovem mulher bonita, sem vida. É essa imagem apática que a senhora me passa. Como não dei jeito no seu caso, acho que vou ter que rasgar o meu diploma de médico!”

Abriu um tímido sorriso. Respirou fundo e fez uma longa pausa que me deixou desconcertado a ponto de eu lhe perguntar se eu a havia ofendido.

Seus olhos marejaram.

Como que saída de uma batalha, ferida, recompôs-se logo.

Eu não sabia o que esperar, apenas que se abrisse…

Finalmente, começou a falar.

-“Ok, doutor, vamos lá; imagine o seguinte: ponha-se no meu lugar por um momento. Você é uma mulher que sonhou muito um dia estar casada, que esperava ter encontrado o amor de tua vida e aí, de repente, você descobre que teu marido está tendo um caso com a tua MÃE há três anos. Foi o único homem da minha vida. Está sendo muito difícil superar isso”.

O meu olhar de compaixão que era maior do que o de surpresa a incentivou a continuar falando.

-“Por amor, eu juro que o perdoei. Não falei nada nem para minha mãe que eu
já sabia que meu marido e ela me traíam”.

“Acho que minha mãe seduziu o meu marido. Ela é jovem e alegre na casa dos 43 anos. Casou com meu pai muito cedo, ela mal saída da adolescência. Sempre foi cheia de vida, adora cantar, dançar, se divertir bastante e se veste como uma “mocinha”. Uma mulher sensual. É uma mãe normal, mas sem muito apego a mim, filha única”.

-“Sofri muito e quando já estava começando a aceitar essa minha tragédia familiar, superando-a lentamente, num almoço familiar de domingo, meus pais revelaram que eu iria ganhar um irmãozinho!”

-“Ora, doutor, como?! Meu pai mesmo dizia: “minha velha não dá mais nada”. Diz que ela perdera o apetite sexual”.

-“Você” está entendendo isso?”

-“Meu pai está feliz e ela disfarça. Meu marido jurou que se afastou dela, depois que ele me viu arrasada”.

-“Estou tão envergonhada e com ódio mortal de minha mãe. Tenho vontade de acabar com essa farsa”.

Continuei calado sem dizer uma palavra sequer, a não ser, “lamento muito”. E digo-lhe que, fazendo o juramento de HIPÓCRATES, nunca quis saber de detalhes sórdidos nessa relação familiar doentia, pois o que me interessava mesmo era tratá-la adequadamente, encaminhando-a para o psicoterapeuta e psiquiatra. De pronto, recusou.

-“Você” está satisfeito agora?!”

-“Por que eu ficaria dona Carla?!”

“Agora me diga, doutor: o que essa criança que vai nascer da barriga de minha mãe será mesmo para mim? Filho de minha mãe e meu marido, meu meio irmão?  Meu enteado ou o quê? Nada! Estou enlouquecendo!”

Atônito, eu realmente não sabia o que dizer…

Então, apanhou sua bolsa e estendendo a sua mão para se despedir, disse: “eu lhe agradeço por me escutar. Estou aliviada. Não voltarei nunca mais e, por favor, não comente nada com ninguém. É muita vergonha. Pensei que coisas assim só aconteciam com os outros”.

Apertei-lhe a mão, não a convidando para que “voltasse sempre”.

Ao dizer: “passe bem, ela virou-me as costas e foi embora para sempre”.

Porém, um dia, ao acaso, no Shopping Center, eu reconheci aquela bela e exuberante mulher ao lado de quem parecia ser o seu marido. Tentava segurar a mão das duas crianças que corriam, aproximadamente, de três e quatro anos de idade, sendo a mais velha, chupando um sorvete, acompanhada de perto pelo casal mais velho, que parecia ser os pais da moça. Os pais dela agiam como se fossem os pais dessa criança mais velha, também.

Ao longe me viu, reconheceu-me e me cumprimentou.

Ela parecia estar bem, mas não  feliz. O seu corpo apresentava marcas de envelhecimento

Ora, pensei: “O que é o mais importante isso tudo?”

Acostumado a grandes dramas pessoais de saúde, poucas vezes havia testemunhado tanta dor física de natureza psicossomática. Nesse caso, concluí que nem medicamentos alopáticos nem homeopáticos, tampouco “medicina alternativa” iriam funcionar, exceto o único remédio salvador, de fato, poderia ser a paz espiritual.

 

 

Paulo Rebelo

 

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