A NEÓFITA*

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A NEÓFITA

Atendi uma senhora de meia idade, interiorana, de origem humilde e digna, com um sério problema de coração. Queixava-se de cansaço, palpitações e falta de ar aos esforços do cotidiano doméstico. Ao examiná-la, constatado que a doença se tratava insuficiência cardíaca. O seu coração estava dilatado e fraco, cuja causa era a pressão alta negligenciada durante décadas. Fui tomado de uma profunda empatia por ela e iniciei imediatamente o tratamento, pondo em sua mão um punhado de comprimidos, incluindo diurético, principalmente, os que facilitassem o trabalho de contratilidade. cardíaca. Assustada, arregalou os olhos. Percebendo sua enorme insegurança, brinquei firme com ela, mas com compaixão dizendo: “oh, mulher de pouca fé!”. Desconfiada, tomou um a um todos os comprimidos. Pedi que aguardasse sentada confortavelmente na sala de espera. Parece conversa de pescador; depois de aproximadamente 45 minutos, estava tão aliviada que dizia não ter mais nada. Era engano seu. Solicitei-lhe alguns exames complementares e prescrevi-lhe os medicamentos adequados para o caso.

No retorno, sob tratamento pleno, estava clinicamente estável. Estávamos satisfeitos. Nessa hora, havia uma acompanhante (que eu não a conhecia), a qual Identificou-se como sua amiga. Era professora e sindicalista, que estranhamente passou a falar pela paciente. Eram 21 h. Ao invés de falarmos sobre o sucesso do caso clínico e preocupante gravidade, ríspida, passou a me interpelar sobre a qualidade do atendimento na recepção e me passando compostura de como eu deveria me portar ao atender pessoas como ela, auto intitulando-se mais importante que a própria paciente, e que estava “pagando a consulta”, dizendo que era uma enorme falta de respeito eu tê-la feito esperar tanto. Não prestou mais!

Tentando acalmá-la sem sucesso, já que elevara ainda mais o tom de voz beligerante, imediatamente, constatado que a paciente estava muito bem sob tratamento, encerrei a consulta. A consequência é que esbravejando, não se levantava da cadeira. Num “ato de livramento”, joguei-lhe o dinheiro da consulta em cima da mesa e disse – “a senhora é arrogante e mal educada; pegue e saia do meu consultório AGORA! Peguei-a pelo braço e a fiz sair da sala na marra. Assustada e “com o rabo entre as pernas”, não pegou o dinheiro e saiu às pressas, dizendo alto em bom tom que iria “procurar seus direitos”. Pensei: “vai, diabo!”, já imaginando que ela poderia ir mesmo. Aquela situação inusitada me me refletir sobre como poderia ter sido evitado todo esse dissabor, que desabonava o meu atendimento. Nunca soube o nome daquela mulher.

Numa bela manhã de trabalho, esbaforida, lá vem a minha secretária me avisar que havia um oficial de justiça, “querendo me entregar um papel”. Era a notificação de que eu era réu (a primeira e única vez em quase quarenta anos de atividade médica). Respirei fundo duas ou três vezes, enquanto contava até dez. Reconheci o oficial de justiça, que tentou me consolar; era meu paciente. “Tenha calma, doutor”, disse ele. Agradeci pelo seu “apoio”. Essa é a vantagem de morarmos num lugar pequeno.

A ação foi julgada improcedente, claro, pois mal orientada pelo seu advogado de acusação, ela, e não minha paciente, que lá estava como “testemunha”, calada e constrangida na audiência, me acusava de “erro medico”. Que absurdo! Lascou-se! A professora começou a esbravejar e choramingar clamando por justiça, estranhamente, sob o beneplácito da juíza, insensível ao meu drama de ser acusado injustamente por “erro médico”. Já havia perdido a manhã. Eu já não estava entendendo mais nada.

O leitor há de se perguntar: “por que a juíza não encerrou a audiência?” “Qual é o problema com essa juíza?” Vou descrever ao prezado leitor o cenário. Bem, ela era uma jovem juíza substituta, nordestina com um forte sotaque “rasgado” e voz esganiçada. Paternalista, pontificava como que para oligofrênicos, com patético respeito ao nível educacional inferior daquelas senhoras. Ao mesmo tempo, falava com se estivesse num palco, fazendo piada de mal gosto sobre a situação incomum para mim. Pedante, começou a fazer um arrazoado sobre a razão da existência de justiça; que ação como aquela era “banal” e que “atravancava” o judiciário. Eu não queria saber de nada disso, apenas que essa prolatasse a sentença definitiva.

Aliviado, vibrei em silêncio. Mas, logo em seguida, “bipolar”, vendo os soluços de perda da ação e percebendo a insatisfação da parte queixosa, tomada de reprovável condescendência a título de prêmio de consolação para a minha acusadora, a juíza disse que ela havia feito a coisa certa em “procurar seus direitos” e que olhando para mim, concluiu: “o problema desse médico é que”, pasme, “vocês dois não se bicaram desde o início, n’é verdade?!”. Meu Deus! Protestei imediatamente. Eu lhe interrompi bruscamente. “Calma, doutor, o senhor está nervoso”, disse com ar de clara superioridade e mandou eu me calar! “Que história é essa de me mandar calar?”, disse baixinho ao meu advogado, que tentava sem sucesso passar panos quentes. Contrariado de estar ali por algo improcedente e o que é pior, ela estar me atribuindo fatos/defeitos que não tinham nada a ver com a ação, de novo, mandou-me calar! Entornou o caldo! Eu disse-lhe que ela era ignorante quanto à medicina, não sabendo a diferença entre estar ansioso, tenso, estressado, nervoso e simplesmente, indignado! São conceitos diferentes, disse-lhe. Falei firme: estou aborrecido! Fez-se silêncio de indiferença de sua parte e encerrou a ação sem dizer mais nenhuma falácia.

Sabe quando tu ganhas uma luta, mas ainda estás com um nó preso na garganta? Eu estava visivelmente insatisfeito, não com o resultado, mas incomodado com a postura de complexo de superioridade da magistrada. Eu precisava fazer algo “para aplacar minha ira”, senão seria como a Vitória de Piro”.

A minha viagem para o Congresso de Cardiologia em São Paulo no dia seguinte parecia um “castigo”. Estava acabado física e emocionalmente. Só pude me acalmar e me concentrar nas palestras, a partir do segundo dia de atividades médicas.

Com a cabeça mais fria, exagerado como Cazuza, e de propósito, fiz uma representação contra a magistrada na ouvidoria do TJ, para o seu presidente e ao juiz superior dela!

Já me incomodava a ausência de resposta desse órgão, quando depois de alguns meses veio uma carta do juiz-ouvidor, elogiando a minha conduta no sentido de “contribuir para o fortalecimento entre o cidadão comum e a Justiça”, “que a juíza não negava o ocorrido”, mas que “as palavras da magistrada foram mal interpretadas e foram postas fora de contexto”. A resposta dela foi por escrito, e não tive acesso a ela. Imagino que sua defesa tenha sido longa e apologética. A “neófita” deve ter passado um final de semana inteiro, fazendo sua carta de defesa, tentando limpar sua imagem, maculada pela arrogância.

O importante é ter dado um basta nesse tipo de conduta abusiva daquela autoridade; um freio nas suas bravatas e de alguma forma, se é que possível, fazê-la rever sua postura/conduta inadequada como magistrada. Não estava lidando com um criminoso.

Uma das coisas que disse é que ali não me sentia confortável no banco dos réus, pois minha maior luta não era no tribunal e sim, nos hospitais.

Paulo Rebelo, médico.

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