A SUBSTITUTA*
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A SUBSTITUTA
Por Paulo Rebelo
Atendi uma mulher na casa dos sessenta e cinco anos.
Tinha uma aparência desgastada.
Guardava ainda traços de uma beleza regional passada.
Falava pouco sobre si.
Estava pálida,
pele seca e sem vida.
Dava muita ênfase ao que sentia,
motivo de sua ida ao meu consultório.
Era o que chamamos no jargão médico de “polissintomática”, isto é, apresentava muitos sintomas, mas aparentemente desconexos.
De verdadeiro mesmo,
as doenças como a artrose e muitas dores no corpo,
a hipertensão arterial,
a gastrite,
a insônia e a ansiedade, o que não é pouco.
Acusava uma dor no peito que lhe incomodava há muitos meses. Às vezes, perdia a visão do lado esquerdo, o rosto parecia paralizar, a cabeça pesava e rodava, o que compunha um cenário de terror para ela: o braço esquerdo estava pesado, fraco e dormente. O diagnóstico, segundo ela: “derrame e coração”.
Todos os exames do coração eram normais, bem como os de laboratório.
Assim, havia uma grande discrepância entre o que ela sentia e o que existia, de fato. A meu ver, boa parte de seus sintomas eram oriundos ou agravados por fatores emocionais.
A hipótese diagnóstica era:
ansiedade com manifestações neurológicas e depressão, além das já citadas.
Deixei claro que seus problemas eram psicossomáticos, todavia que não eram coisas criadas da sua cabeça e sim, tudo indicava, surgidas a partir de sua dura história de vida. Começou a trabalhar cêdo na infância e durante toda a adolescência e depois, viveu como empregada doméstica na casa de terceiros.
Pouco ou nada parecia entender; senti que ela não acreditou, tal era a presença dos sintomas e sinais, que para ela, eram de infarto, derrame ou ambos.
Mediquei-lhe com antihipertensivo, calmante, antidepressivo e sintomáticos.
Duas semanas depois, ao retornar ao consultório,
o seu rosto sem vida e o sorriso sem graça já denunciavam o fracasso de meu tratamento.
Aí eu respirei fundo e liguei para a minha secretária na recepção, dizendo que aquela consulta-retorno iria demorar mais uma hora aproximadamente.
Eu já conhecia muito de sua vida pessoal: menina da ilha no interior do Pará, de uma família paupérrima de muitos filhos, o pai agricultor, mãe doméstica e pescadora, morava numa palafita às margens do rio, afastada da vila.
Para tentar facilitar o seu entendimento, abri a tela do computador e digitei no GOOGLE: “SOMATIZAÇÃO”. O trabalho era de uma grande instituição médica, que listava por aparelhos e sistemas, dezenas e dezenas de problemas físicos ou seja, sinais e sintomas incapacitantes ou não oriundos de transtornos emocionais.
A medida que a filha, que era professora, ia lendo comigo (a paciente era analfabeta), percebia-se o interesse crescente da paciente em comparar o que escutava ao que apresentava.
Curiosamente, seus olhos arregalaram, empalideceu, sua respiração ficou mais rápida e pesada. Ao término da leitura, seu rosto já mudara; ruborizada,
esboçou um leve sorriso de constrangimento.
Mas, faltava algo. Por que essa riqueza de sintomas, em contraste com uma pobreza tão grande de sinais ou seja, uma grave doença?
Perguntei-lhe: há algo que a senhora julgue importante me dizer? O que a senhora lembra da sua infância? Qual a primeira coisa que lhe vem a cabeça?
De novo, os seus olhos arregalaram,
baixou a vista, entristeceu, os olhos marejaram, caiu uma lágrima e se fechou, emudecendo mais uma vez.
A filha disse: “fale, mamãe, por favor”.
Respirou fundo, fez uma longa e silenciosa pausa, quando, então, falou:
“Eu tinha doze anos e ao acordar pela manhã chamei pela minha mãe: mãe, mãe! Ao longe meu pai gritou: ela foi embora! Não entendi nada. Minha mãezinha se foi? Não sei nem o que senti depois; parece que tinha tomado um choque. Fiquei parece um fantasma pela casa. Queria chorar, mas uma voz me dizia que ela ia voltar. Nunca voltou. Mamãe nos abandonou.
Depois daquela manhã, passei a fazer o trabalho pesado de minha mãe e cuidar dos meus cinco irmãos menores. Isso durante muito tempo.
A partir dessa época passei a ser a mulher de meu pai, também. O senhor entende, doutor?!”
Não é a toa que aquela mulher tivesse tanta dor no corpo e na alma.
Até eu engoli seco e me deu um nó na garganta. Não sabia exatamente o que dizer, pois não sou psicólogo nem psiquiatra, mas ter apenas empatia e aliviar o seu sofrimento.
Eu escutara incrédulo o abuso sexual infantil daquela pobre senhora, enquanto piedosamente, assistia
mãe e filha abraçarem-se e chorar copiosamente,
lavando suas almas.
Após abrir seu coração,
vendo aquela mulher, agora
parecia ser outra pessoa; parece que
havia saído um enorme peso de dentro de si.
Enxugou suas lágrimas,
abraçou-me com as forças que ainda lhe restara,
ao mesmo tempo em que agradecida disse: “muito obrigado, doutor!”
Ao se despedir, falou, acreditem se quiser:
“eu não estou sentindo quase mais nada”.
Paulo Rebelo, o escrevente do tempo.