UMA CONSULTA DESAGRADÁVEL*

UMA CONSULTA DESAGRADÁVEL
Por Paulo Rebelo

Há pessoas que, verdadeiramente, não sabem o seu lugar.
Em tempos de globalização, perdeu-se a educação, criando-se uma intimidade não concedida, à base da abjeta intrusão social.

Atendi no consultório uma mulher inconveniente. Veio para realizar um check-up. Segura de si, já veio determinando o que queria especificamente. Soube que ocupava um cargo gerencial. Sem dúvida, acostumada a lidar com subordinados, imaginou que eu fosse mais um. Até aí nada demais.

Durante a anamnese, procedimento formal que busca colher informações sobre o paciente, sem mais nem menos, sua fala enveredou pelo caminho da vacinação contra a COVID-19. Cética e em tom de autoconfiança excessiva, como que esperasse minha reação, disse que não era vacinada contra a COVID-19 e que não iria sê-la e então, passou a discorrer sobre um conhecimento na área, próprio da ignorância cultivada nas mídias sociais.

Continuei a consulta, buscando levá-la para o seu propósito: o check-up.

Todavia, a partir da aí, sem se importar com o motivo de seu atendimento, pedante, assumindo o controle do momento, passou a “lecionar” sobre as desvantagens dos imunizantes; como estar recebendo algo que não se conhece exatamente e que no futuro poderia lhe causar alguma “doença desconhecida”, pontificar sobre a inviolabilidade do corpo e portanto, da liberdade individual para tomar ou não o imunizante e outras afirmações comletamente descabidas na consulta. Calado estava, calado fiquei.
Pensei: “ela quer ensinar o PAI NOSSO ao vigário”; visivelmente, estava doente emocionalmente; a pandemia da COVID-19 estaria prejudicando o seu intelecto e distorcendo o juízo de valor, manifestado com crassa e inata ignorância. Insistia em querer um exame para atestar se ela era “resistente ao vírus”.

Danou-se, haja paciência! A consulta é, sobretudo, pedagógica, mas há limites. Eis que não conheço ninguém na face da terra que saiba explicar a COVID-19 em toda a sua complexidade.

Ainda que lhe dissesse que a imunização em massa é uma questão de saúde coletiva e que se sobrepõe a escolha pessoal e que há outras questões de natureza científica, que atestam que o caminho para a erradicação da COVID-19, entre outras coisas, a vacinação, ela, ao insistir em fazer um “debate” sobre o assunto, me vi obrigado a interromper o assunto e antes que estragasse todo o meu atendimento daquela manhã, finalizar consulta imediatamente. Calou-se e deve ter me visto como um médico grosso e maleducado.

O que havia feito eu para merecer tal “castigo”? São os ossos do ofício. Dei-lhe a solicitação de exames para o seu check-up.

A classe média está inchada pela “emergente” e empobrecida, mas mesmo piorada na pandemia da COVID-19, não perde a pose de pretensa nobreza, de onde advêm o autoritarismo, patriarcalismo, a supremacia das elites, a escravidão, o racismo, a aporofobia, a homofobia, a misoginia e tudo o que impede da humanidade ser civilizada e, verdadeiramente, humana.

Paulo Rebelo, o medico.

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