O JUIZ DE PAZ*

🖋O JUIZ DE PAZ
Por Paulo Rebelo

Às vezes, o indivíduo cava a sua própria sepultura. Já vi isso inúmeras vezes na prática do consultório.

Alguns anos atrás, ocorreu-me uma consulta médica inusitada, entre muitas que faço diariamente.

Veio ao meu consultório um casal, cujo cônjuge tinha tido um infarto do miocárdio há vários meses. Quanto a isso, dentro do esperado, estava se recuperando bem. A esposa ficou na sala de espera. Estranhei sua atitude, pois nesses casos, a companheira está sempre presente na consulta.

Durante o atendimento, vim a saber depois que a união dos dois estava profundamente abalada, para não dizer acabada.

O complicado caso clínico inicia-se num casamento de trinta anos que desmoronou e recolhendo os cacos, o homem e a ex-mulher, incrivelmente, tentavam reatar, pois reavaliado o enorme estrago, pesados os prós e contras, às duras penas, engolindo todas as dores do mundo, os dois tentavam recomeçar a vida agora a quatro.

Eu não os conhecia e me reservava à condição de mero observador, sem interferir muito na história, exceto buscar conduzir a anamnese adequadamente, isto é a sua história sem que ele se perdesse, porém mais preocupado com a condição clínica do homem.

Angustiado e tristonho, iniciou sua consulta dizendo que não queria apenas falar de sua doença ; queria falar sobre sua condição matrimonial que já não existia mais, mas que ele acreditava sim, que “depois de ter visitado o inferno”, tinha salvação; poderia dar a volta por cima para, então, poder se curar completamente. Era como se ele quisesse recomeçar tudo de zero, algo impossível, mas deixei que acreditasse. Assim, no início, eu o permiti falar livremente, porquanto acredito piamente ainda hoje que “a maioria dos problemas do homem começa e termina na alma, padecendo o corpo”, posto que seja importante o vínculo de confiança na relação médico paciente, portanto não é de estranhar que o consultório médico seja um “confessionário”. Infelizmente, hoje, é cada vez menos.

Antes de contar-lhe o que houve exatamente, gostaria de, data venia, fazer um adendo; o interessante é que no passado existia o verdadeiro conceito de “médico da família”, que não era apenas do casal, mas da família inteira. O médico era uma espécie de consultor ou clarividente e nas crises familiares, um emissário da paz, um diplomata. Aquele médico que eu, como paciente vi com os meus próprios olhos e tive na minha casa quando criança, era tudo isso: do clínico geral ao pediatra, passando por geriatra e até “conselheiro familiar”, tratando da criança ao avô. Bons tempos aqueles quando havia familiaridade e cumplicidade entre o médico e o paciente. Bem, amigo-A, tu has de perguntar: “onde tu queres chegar com o arrazoado?” Há velhos aforismos clínicos que dizem: “se algo é escondido do médico ou lhe passa despercebido, haverá um falecido” ou ainda “A mentira ou a omissão da verdade é cumplice da doença”. Destarte, só interessa a honestidade na relação entre o médico e seu paciente, claro, com a providencial presença da família verdadeiramente, porém que família, quando ela se mostra fragilizada ou um arremedo?

Além disso, para complicar, a socieadade mudou e o médico, com ela, mudou; está diferente; está mais distante e ressabiado, até para se proteger de uma sociedade ciente de seus direitos e poderes, mas pouco ou nada afeita a deveres. Outrossim, o atual “médico da família”, atuante nas periferias das grandes cidades, de concepção marxista, que, juntamente com uma equipe de saúde multidisciplinar, com pouca ou nenhuma privacidade, cuida não só de uma, mas de várias outras; uma cópia mal feita do original.

A necessidade daquele meu paciente falar tudo era verdadeira e hoje, para a maioria ainda a é, mas está mudada. Naquela época, o médico parecia estar mais disposto a escutar o paciente, também. Havia as confidências nas conversas reservadas e, principalmente, o pudor, diferentemente, de hoje, quando fala-se de sua vida, inclusive íntima, abertamente para os milhares “seguidores” no INSTAGRAM, como se isso fosse importante.

Dito isso, voltando ao caso clínico, acontece que a vida matrimonial do casal que era boa até quase dois anos atrás, como passo a relatar a seguir, descarrilou. Ele agricultor e piscicultor de posses e ela professora. Sua vida era tão boa que resolvera estragar; arranjou uma mulher “70%” mais jovem que ele. Tudo não passaria de uma recaída juvenil em meio à maturidade, com o devido perdão de sua esposa, se a bela jovem, dele não tivesse engravidado.

Como se não bastasse, nesse interregno, ele teve um infarto e teve que colocar dois stents coronarianos. Foi um duro golpe na sua auto estima e auto confiança daquele rude macho caboclo amazônida que vencera na vida no braço, sem sequer completar os estudos.

Assim, para piorar, o motivo principal da vinda do homem ao meu consultório foi o “princípio de derrame”; com tanta pressão familiar sobre si, além do infarto pregresso, acabou tendo um discreto AVC isquêmico, porém por pressão alta não controlada, em parte, em decorrência da ansiedade crônica e tensão dos últimos tempos. Estava a caminho da morte certa.

Arrependido, ele queria voltar para casa, mas a ex-mulher relutava em aceitá-lo de volta; perdoar, sim, mas voltar ao casamento, jamais; ela não queria ser a “outra” ou mais uma, sabe-se lá o que mesmo. Às vezes, rolava um “feedback”, para ódio e arrependimento dela.

A gota d’água para que a separaçao ocorresse, a causa de tanto infortúnio pessoal e revolta familiar ocorrera quando ele teria decidido a sair de casa de vez para assumir a nova família, “para viver o seu grande e novo amor”, sendo que saíra para não mais voltar e daí, simplesmente, depois de dois anos sofrendo, a mulher, definitivamente, não suportando tamanha humilhação e falta de respeito do marido para si, filhos, familiares e amigos, deu um basta; buscou a separação.

Depois de algum tempo, ela mesma tentou refazer a sua vida sentimental com outro, um antigo namorado, para desespero do ex-marido. Eu nunca tinha ouvido falar de corno depois da separação!

A vida dá muitos rodopios, veja só. O homem adoeceu e diante das consequências de sua enfermidade, a jovem companheira, inexperiente e inábil nessa situação (que somente uma mulher madura poderia assumir), resolveu “passar a bola adiante”, permitindo que o agora seu “esposo” fosse cuidado pela ex-mulher que, curiosamente, passara a ser sua mulher de novo, ainda que temporariamente, algo que não era de seu agrado, mas que fora posta nessa constrangedora situação de “ex-esposa até que a morte os separe”, para o escárnio de parentes e familiares do “casal sem vergonha”.

Além da complexidade do caso clínico, havia fatores extra campo, dificultando o tratamento. Começaram a bater boca e a ex-mulher “cresceu” e ele fragilizado, “encolheu”. Por um momento, quase perco o controle da situação; o meu consultório mais se parecia como uma delegacia de polícia com “ACAREAÇÃO” e troca de acusação entre os dois, remoendo o passado com direito à lavagem de roupa suja. Após adverti-los, se calaram.

Eu me perguntava a todo instante, enquanto o atenda:

“pelo amor de DEUS, onde eu entro nessa história?!”

Eis o casal que estava à minha frente, buscando uma solução não só médica, mas matrimonial.

Após resolver a questão médica, assegurando-lhe que do coração o homem estava bem e com o devido tratamento neurológico e fisioterápico do AVC, ele ficaria plenamente recuperado e logo, acreditando que, a despeito da tragédia familiar ainda houvesse uma chama de amor entre eles, eu os convidei a voltar à vida matrimonial.
“Passem uma régua nisso e procurem viver felizes a partir da agora”, disse-lhes.

O homem brilhou os olhos escorrendo lagrimas de esperançs; a mulher se surpreendeu pela minha “intromissão” e pela primeira vez, sorriu. Não dissera ela nem sim nem não. Eu estava otimista, mas exausto.

Eu estava de férias no RIO, quando senti um tapinha afetuoso e meio forte nas costas.

“Ei, doutor Paulo! Lembra da gente?

Abriram um largo sorriso. Dez anos depois, estavam mais velhos, mas me pareceram mais bonitos e felizes.
O casal havia voltado!

“E essa menina linda aí?” Perguntei-lhes. A mulher disse: “agora a filha dele, doutor, ela é minha filha do coração. Sempre quis ter uma menina. Olha como DEUS opera de maneira estranha na vida da gente. Nunca imaginei que seria assim. Ela está conosco desde os 2 anos de idade, depois que ele se separou da “outra”, disse escorando baixinho no meu ouvido: “aquela vigarista, mas ele, tambem, doutor!”

“Ó meu doutor, muito obrigado! O senhor foi muito mais que um médico!” Disse o homem:

“O senhor foi o nosso JUIZ DE PAZ!”

Assim, também, é o médico.

Paulo Rebelo, o médico dublê de Juiz de Paz.

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